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QUANDO A VIDA MUDA

A vida muda rapidamente. A vida muda em um instante. Você se senta para jantar, e a vida que você conhecia termina.

Joan Didion

Margarete Hülsendeger

Na antevéspera do Natal de 2021 morreu a escritora americana Joan Didion, aos 87 anos, devido à doença de Parkinson. Ela publicou nove romances e oito livros de não-ficção e, em parceria com o marido, o escritor John Gregory Dunne (1932-2003), colaborou na redação de diversos roteiros. Em 2013, recebeu, ao lado de outros 24 escritores, acadêmicos, performers e artistas, o prêmio National Medal of Arts. Na premiação, o ex-presidente Barack Obama disse: “Estamos celebrando essas pessoas não só pelo seu talento, mas por criarem algo realmente novo, como Joan Didion, que com razão ganhou a distinção de uma das escritoras mais celebradas de nossa geração. Estou surpreso porque ela ainda não havia ganho esse prêmio”.

Entre os vários livros escritos por Didion, talvez o mais conhecido seja O ano do pensamento mágico[1] (em inglês The Year of Magical Thinking), no qual a autora compartilha com o leitor seus pensamentos e sentimentos durante o ano após a morte do marido, enquanto sua única filha, Quintana, passava por sérios problemas de saúde. Essa obra, publicada em 2005, recebeu, em novembro do mesmo ano, o prêmio na categoria de não-ficção no National Book Award que, junto com o Neustadt International Prize for Literature e o Pulitzer, é um dos mais importantes prêmios literários dos Estados Unidos, dado anualmente aos melhores livros escritos por cidadãos norte-americanos vivos.

O ano do pensamento mágico começa com a frase citada na epígrafe deste texto e, que, segundo a autora, foram as primeiras palavras que escreveu depois da morte do esposo. Palavras armazenadas em um documento de word datado de janeiro de 2004. Na verdade, ainda teremos de ler algumas páginas para descobrir seu significado, pois, ao longo dos primeiros capítulos, Didion se refere a esse evento como “depois do que aconteceu”, refletindo sobre como é simples passar-se de um “instante normal” para uma tragédia com o poder de mudar a nossa vida. A banalidade dos momentos que antecedem o “desastre” a intrigam por reconhecer que, ao nos despedirmos de alguém nunca pensamos na possibilidade de aquela despedida ser a última conversa, o último beijo e abraço ou a última discussão.

Quando ela retoma o texto, em outubro de 2004, meses a separam da noite de 30 de dezembro de 2003 quando, ao sentar para jantar, vê Dunne interromper-se no meio de uma frase e depois cair. A partir desse ponto, Didion realiza um exame minucioso de tudo o que ocorreu naquele dia: desde a visita ao hospital onde sua filha encontrava-se inconsciente em uma UTI até as últimas palavras do marido antes de bater com a cabeça na mesa, para depois desabar no chão. A incapacidade de compreender esses eventos a levam a desejar ter uma máquina de edição capaz rebobinar as imagens e assim rever, segundo a segundo, tudo o que aconteceu, porque, conforme ela, “as palavras não me bastam para encontrar um significado. Neste caso preciso que o que penso e acredito seja penetrável, ao menos para mim mesma”.

Em alguns trechos da narrativa, Didion procura distanciar-se dessa experiência traumática narrando, de forma quase jornalística, as circunstâncias daquela noite de 30 de dezembro de 2003. Ela descreve o colapso de Dunne, a chegada dos socorristas, as tentativas de animação, a saída apressada do apartamento, a chegada no hospital e o momento no qual recebe de “seu assistente social” a notícia do falecimento do marido. No entanto, apesar dos esforços em organizar os fatos em uma linha temporal coerente, a angústia e a dor afloram em cada palavra e frase, derrubando qualquer intenção de objetividade. Uma dor que, de acordo com Didion, vem em ondas, porque não há distância. Uma dor que provoca aperto na garganta, falta de ar, necessidade de suspirar. Uma dor que enfraquece os joelhos, cega os olhos e cancela a normalidade da vida.

A vivência pessoal e intima do luto é o que Joan Didion divide com seus leitores. Nessa dissecação de sentimentos e emoções ela compartilha as leituras realizadas durante 2004, um recurso para tentar compreender o que estava experimentando. Ela fala de golfinhos que se recusam a comer após a morte do parceiro, de gansos que continuam chamando o companheiro até ficarem desorientados e perdidos e, é claro, de homens e mulheres que também não param de procurar, deixam de comer e esquecem até mesmo de respirar quando perdem a pessoa amada. Ela cita trechos de livros que falam sobre o luto, dividida entre não entender porque está lendo esse tipo de texto e a sensação de estar, enfim, sendo compreendida.

O ano do pensamento mágico, por mais clichê que pareça, não trata apenas do luto; também é uma história de superação. Durante esse longo ano, Didion, além de lidar com a morte do marido, precisou estar presente para a filha, Quintana. Vítima de uma gripe que se transformou em uma pneumonia e depois em um choque séptico, ela permaneceu por várias semanas inconsciente, só recebendo a notícia da morte do pai quinze dias após o seu falecimento. A angústia pelo estado de saúde da filha e a dor da ausência do marido foram uma constante no decorrer desse doloroso ano e a escrita do livro se transformou na forma encontrada por Didion para suportar os dias intermináveis de silêncio e tristeza.

O título da obra, O ano do pensamento mágico, se refere a todos aqueles momentos, típicos de quem está mergulhado na dor da perda, nos quais Didion esquecia que Dunne estava morto e pensava nos assuntos que queria discutir com ele: “Não havia nada que eu não discutisse com John. Como éramos escritores e ambos trabalhávamos em casa, nossos dias eram povoados pelo som das nossas vozes”. Ou aqueles breves instantes quando o barulho de uma porta abrindo ou fechando fazia-a imaginar que o marido havia retornado. Por isso, durante todo o ano de 2004 ela diz ter acompanhado a passagem do tempo pelo calendário do ano anterior: “[..] o que estávamos fazendo nesse dia, onde jantamos, será que esse é o dia em que, há um ano, tomamos um avião para Honolulu depois do casamento de Quintana, será […]”. Contudo, com desalento, ela narra como aos poucos a loucura daqueles primeiros meses ia arrefecendo, “mesmo que nenhuma clareza estive ocupando o seu lugar”; para, finalmente, aceitar a necessidade de seguir em frente, reconhecendo que, ao tentarmos manter vivos os nossos mortos, estamos, na verdade, forçando-os a permanecerem conosco.

Joan Didion e John Dunne faleceram em um mês de dezembro, mas com uma diferença de dezessete anos. Quintana viveu um pouco mais, mas não o suficiente, morrendo, aos 39 anos, pouco tempo depois de O ano do pensamento mágico ter sido publicado. Entretanto, apesar dos três já terem partido e que eles agora possam ser apenas uma fotografia esquecida dentro de uma gaveta, os laços de amor que os uniram encontram-se perpetuados na escrita de Didion e as palavras impressas nesse livro sensível e belo jamais serão levadas pela água.


Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

[1] DIDION, Joan. O ano do pensamento mágico. Tradução Marina Vargas. Rio de janeiro: Harper Collins, 2018 (Edição Kindle).

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