Crônicas Margarete Hülsendeger Margarete Hülsendeger

O PODER ESTÁ NO INÍCIO

Para ganhar um ano-novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano-Novo cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade

Por Margarete Hülsendeger

Em 46 a.C., por meio de um decreto, o ditador romano Júlio César fixou a data de 1º de janeiro como o primeiro dia do ano novo no mundo ocidental. Nessa data também costumava-se honrar Jano, o deus dos portões, representado sempre com duas faces (bifronte), uma voltada para frente, fitando o futuro, e outra para trás, olhando para o passado. Como Jano (Janus, em latim) simboliza as mudanças, as transições, as escolhas e os inícios, sua figura também está associada às portas (de entrada e saída) pelas quais as pessoas devem passar durante sua existência mortal. Santo Agostinho (354-430), em Cidade de Deus, escreveu: “Jano tem poder sobre todos os começos […]” e “Em poder de Jano estão os inícios”. O nome do primeiro mês do ano é uma homenagem a esse deus.

Mesmo que outras culturas, países e religiões tenham outros “começos”, na maior parte do Ocidente o 1º de janeiro simboliza o início de uma nova etapa ou um novo ciclo. Por isso, o período que antecede esse dia é sempre repleto de expectativas, afinal tem-se a ilusão de que o universo em um breve instante, reiniciará do zero (reboot). Uma ilusão que se mantém à base de superstições: usar roupa branca – símbolo da pureza e das boas intenções –, comer determinados alimentos – uvas, lentilhas, romã – porque vão atrair fartura e sorte para o próximo ano e não comer a carne de animais que ciscam para trás (frango), pois significaria um retrocesso em relação a essa nova etapa que se inicia.

Ao mencionar esses costumes não tenho a intenção de menosprezá-los, principalmente, porque acredito no efeito catártico que essas ações têm sobre a mente humana. Pensar que podemos recomeçar do zero, esquecendo as tristezas e os problemas que nos desgastaram durante os últimos 365 dias, nos ajuda a olhar para o futuro em busca de novos desafios, com a esperança de que tudo dessa vez será diferente. Esse pensamento, tipo abracadabra, aparece na maioria das culturas.

Na China, que segue o calendário lunar, apesar do dia e do mês serem diferentes dos do Ocidente, as tradições e superstições são muito parecidas, pois acredita-se que o que é feito nas primeiras horas da virada do ano afetará o restante do ano. O mesmo se pode dizer da celebração judaica do Rosh Hashaná. Os judeus acreditam que nessa data – o dia é móvel, mas o mês é quase sempre setembro – é dada uma nova oportunidade para as pessoas perceberem o real objetivo da existência humana. Por essa razão, na mesa dos judeus também há a presença de alimentos – maçã com mel, tâmara, romã, peixe – que simbolizam essa nova chance de mudança que Deus oferece aos homens.

Em todos esses casos, as intenções dos rituais são sempre as mesmas: abrir-se para a possibilidade de transformações que nos tornarão melhores seres humanos, alimentar a esperança que durante o ano anterior diminuiu conforme as adversidades cresciam e acreditar que, sim, agora faremos tudo do jeito certo. Nossa mente racional pode até chamar essas ideias de “pensamento mágico”, com o argumento que a troca da folha do calendário não tem qualquer influência sobre a nossa mente ou as nossas ações. No entanto, o efeito purificador é tão poderoso que qualquer tipo de racionalização fica em segundo plano. O encanto, a magia, de um reboot é forte demais para simplesmente o ignorarmos.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

Como escrevi antes, não vejo nenhum problema em acreditar na possibilidade de um recomeço. Ao contrário. Vejo a geração de novas expectativas como algo saudável porque nos faz refletir sobre o que fizemos, de bom ou de ruim, ao longo de 365 dias. E refletir significa pensar sobre como agimos, não só em relação a nós, mas também em relação aos outros. O estabelecimento de metas se torna, então, uma espécie de mapa capaz de nos guiar durante um determinado tempo. Isso quer dizer que não devemos pegar atalhos? Ou que nunca vamos nos perder? Não e não. Um mapa é apenas um roteiro, ou uma abstração, que pode ser alterado a qualquer momento. No que precisamos prestar atenção é aonde queremos chegar. Os atalhos vão nos guiar por caminhos nos quais seremos indivíduos melhores? Ou eles servem apenas para nos desculpar quando fazemos algo de errado?

Quando este texto for publicado o 1º janeiro já terá passado e estaremos vivendo um ano novo. Um ano onde poderemos abrir e fechar portas, enfrentar ou fugir de batalhas, viver plenamente a vida ou nos escondermos dela. As opções são infinitas, assim como os sonhos que acalentamos antes da meia noite do dia 31 de dezembro. Façamos, então, como o deus Jano: concedamos poder ao início e à chave que abrirá a porta para um novo ciclo de nossas vidas.

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