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“ENSINAR INEXISTE SEM APRENDER” – O PENSAMENTO DE PAULO FREIRE EM DIFERENTES LÍNGUAS INDÍGENAS

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“ENSINAR INEXISTE SEM APRENDER” –  O PENSAMENTO DE PAULO FREIRE EM DIFERENTES LÍNGUAS INDÍGENAS

*Josélia Gomes Neves

Resumo – O presente texto tem como objetivo apresentar um relato de experiência que envolveu as relações entre aprender e ensinar na perspectiva freireana e seu posterior desdobramento na tradução/aproximação em línguas indígenas, atividade produzida pelos estudantes de diferentes povos. Concluímos que as reflexões resultantes das leituras de Pedagogia da Autonomia e posteriormente reelaboradas por meio dos escritos em línguas indígenas talvez tenha possibilitado aprendizagens significativas uma vez que a mensagem textual foi reorganizada a partir das compreensões ameríndias.

Palavras-Chave: Didática Intercultural. Paulo Freire. Aprender e ensinar. Línguas Indígenas.

Resumen – El presente texto tiene como objetivo presentar un relato de experiencia que involucró las relaciones entre aprender y enseñar en la perspectiva monja y su posterior despliegue en la traducción/aproximación en lenguas indígenas, actividad producida por los estudiantes de diferentes pueblos. Concluimos que las reflexiones resultantes de las lecturas de Pedagogía de la Autonomía y posteriormente reelaboradas por medio de los escritos en lenguas indígenas quizás hayan posibilitado aprendizajes significativos una vez que el mensaje textual fue reorganizado a partir de las comprensiones amerindias.

Palabras clave: Didáctica Intercultural. Paulo Freire. Aprender y enseñar. Lenguas Indígenas.

Introdução

O ano de 2021 assim como o anterior foi marcado por muitas tristezas decorrentes da crise sanitária e política desencadeada pela covid-19 e seu lastro de mortes. Mas, houve momentos de alento e esperança diante de tanta tragédia, como a lembrança do 100º aniversário de Paulo Freire acompanhada das memórias de suas contribuições para a educação emancipadora.

Este contexto foi importante para mobilizar uma das reflexões desenvolvidas neste ano no decorrer do mês de novembro no âmbito da disciplina “Didática Intercultural: processos de ensinar e aprender”. Este componente curricular faz parte do Projeto Pedagógico do Curso (PPC) da Licenciatura em Educação Básica Intercultural da Universidade Federal de Rondônia, Campus Urupá de Ji-Paraná.

O texto em tela tem a finalidade de apresentar um relato de experiência que envolveu as relações entre o aprender e o ensinar na perspectiva freireana que ocorreu no segundo semestre de 2021 por meio da pesquisa bibliográfica (FREIRE, 1996). A atividade proposta para a Turma F foi realizada como atividade assíncrona que consiste em uma etapa do trabalho pedagógico complementar com vistas ao aprofundamento de determinado conteúdo produzida com o suporte das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs).

A justificativa apoiou-se na previsão do planejamento pedagógico da disciplina tendo em vista o cumprimento das finalidades formativas que é propiciar situações de trânsito entre a língua portuguesa e as línguas indígenas. Neste sentido, a educação crítica freireana  disponibiliza elementos impulsionadores de valorização da educação popular com visíveis aproximações com a Educação Escolar Indígena, de modo que: “[…] lembrar Paulo Freire significa afirmar que as reflexões da educação problematizadora ainda têm muito a dizer, bem como a interrogar as estruturas sociais perversas que produzem, seletivamente, morte, não vida”. (NEVES, 2021, p. 130).

Paulo Freire e os Povos Indígenas

Há um sexto sentido que o oprimido tem para adivinhar. Esse senso nos oprimidos é mais para adivinhar do que apropriar-se do fato […]. Essas manhas, eu acho, não tenho dúvida alguma, de que não seria no meio desses índios que essas manhas não existam. Há 480 anos eles são obrigados a serem manhosos. (FREIRE, 1982, p. 5).

Há diferentes registros que evidenciam a relação de Paulo Freire com os Povos Indígenas. Destacamos pelo menos duas referências nesta direção: o encontro ocorrido em 1982 com indigenistas no estado do Mato Grosso em uma assembleia do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), ocasião em que foi discutida a Educação Escolar Indígena (FREIRE, 1982). Embora afirmasse que conhecia pouco sobre Educação Escolar Indígena, pretendia desafiar o grupo e também ser por eles desafiados. 

Na oportunidade, reiterou que uma escola de sentidos a princípio precisa levar em conta o conhecimento comunitário, pois: “não há prática pedagógica que não parta da concretude cultural e histórica do grupo com quem se trabalha. Esse é o princípio fundamental dessa pedagogia, serve lá também. É absolutamente autêntico lá” . (FREIRE, 1982, p. 24).

A outra referência é a escrita da 3ª e última carta que compõe o livro “Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos” endereçada à liderança indígena Galdino Pataxó em função de seu brutal assassinato. (FREIRE, 2000). No decorrer deste processo elaborou uma síntese crítica sobre o mundo e as potencialidades da formação: “Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, […] com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, […] inviabilizando o amor. Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda. […]”. (FREIRE, 2000, p. 30-31, grifo nosso).

O pensamento de Paulo Freire e as línguas indígenas

Figura 1 – Paulo Freire.

Fonte: Internet.

De acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), nº 9394/1996 a proposta educativa para os povos indígenas se traduz em uma educação escolar bilíngue e intercultural com vistas à valorização de suas línguas maternas, dentre outros aspectos. (BRASIL, 1996). Nesta direção, a Resolução nº 1/2015 que trata das orientações sobre a Formação de Professores Indígenas na Educação Superior reiterou estas finalidades por meio do artigo 12: “[…].

Na construção e organização dos currículos que objetivam a formação inicial e continuada dos professores indígenas, deve-se considerar: a interculturalidade, o bilinguismo ou multilinguismo, […]”. (BRASIL, 2015, p. 4). Considerando esta fundamentação legal, bem como a ementa da disciplina constante no Projeto Pedagógico do Curso (PPC) é que propomos a referida atividade.  O texto selecionado foi extraído do livro Pedagogia da Autonomia de Paulo Freire conforme transcrição abaixo:

[…]. Ensinar inexiste sem aprender e vice-versa e foi aprendendo socialmente que, historicamente, mulheres e homens descobriram que era possível ensinar. Foi assim, socialmente aprendendo, que ao longo dos tempos mulheres e homens perceberam que era possível – depois, preciso – trabalhar maneiras, caminhos, métodos de ensinar. […]. (FREIRE, 1996, p. 12).

O material foi encaminhado pelo aplicativo Whatsapp por meio desta imagem extraída da internet com as seguintes orientações: “1. Leia o material abaixo com bastante atenção; 2. Faça a tradução em sua língua indígena; 3. Digite o texto pelo Whatsapp ou no computador e envie para a professora; 4. Em caso do português como primeira língua pesquise 5 (cinco) palavras da citação e faça a tradução para a língua indígena”.

Figura 2 – Fragmento da Pedagogia da Autonomia.

Fonte: Dado da Internet.

No decorrer da atividade, algumas tarefas passaram por revisão porque vinha sem o nome da autor do texto ou escrito em letras minúsculas. A maioria das atividades foram feitas pelo Whatsapp por meio de mensagens de texto ou de voz e alguns estudantes enviaram por e-mail. Após o recebimento dos trabalhos digitados eles foram sistematizados em um único arquivo e foi dessa fonte que selecionei 7 (sete) citações referentes aos seguintes povos: Aikanã, Amondawa, Oro Mon, Oro Eo, Oro At, Oro Nao, Surui e Zoró, conforme registros abaixo:

Ezīiai ezīi’apanãdupa hina ezīina’apapü ezii’apaē vice-versa hena kawãpü ezīikaē dadaika kawãpü detīa’ene kureza’ene ãrüahedukaripü üaē ezii’apapü ezīiaeyei.

Kawãpü iza ezīihedukaripü detīa’ene kureza’ene iene ãrüahedukaripü huaē tara’aihedukaripü pürüpadukarie amīine ãhedukari’ine ezīikeaedukariē zãmiã. Paulo Freire, 1996.

Tradutora: Jucilene Aikanã

Ean tá kuahan ga de niyga aero ga tá kuan nande manterá manbeuawera kuna ea poa kuaebae ga manbeuawera.Inbeweia me ke ea e kuahawe kuna ea kuaebae ga e kuahawe aramehe que ga hoi aparawyawo.Naname AE ehoi ea anga mo. Paulo Freire, 1996.

Tradutor: Arikam Amondawa

Kana’ kra wa,  ká om ma’, ká om  tati’ xini ,pain  ri’ wanayi, ka  yá ya xini wanayi  Paim , makraxi  pain kra  pá né,  narima wriko trama , ka na Ko  an het nanain  já  ra’ né Ka, kaxini Oro krawa.

Ak ima na, pain makraxi, Ka Tati ki xini Oro krawa. Narima com trama ma .Om ká xokwri ne Ka tati ‘ka kamai Ka ra ‘ne, Ka kaxini Oro krawa, ra na ka mam’ xini wanayi, Ka, Ka  xini oro koxuminai krawa.

Tradutora: Cristiane Pijim Oro Eo

Gobawe esade esa polo mãh Gobawe Enã ani E, Enã iwesame. Esade na E, Enã soe Sade Enã ãnkalahmi Enã é, Enã oy Ey eyami waleb ey Denã alaîh Gobaweh same ka mater ma é.

Enã teh waled eyami oy Denã akobah, aweitxa ywesamemi teh Enã soe sameka aje alaîh emi é, soe kanê, soenã, meh, Eyamih soe same ka BaGah é.

Tradutor: Oyagui Maycon Surui

Ma na ka taxi’ wa,Ye para’ kana’ kana’ xam mi tokokwa’ pain oro wari kwa’ kem, pain ka’ Narima nekekem, ye ka Tarama’ nukukun ka na’,ye ka’ maki ne ka’ kana’ yataki xine’ iri wanayinain ka’ kana’ xo wa’ ak ima’ na.

Tradutor: Lino Oro At

Am pama kubé anga pangubé pi makuj tereá.Ambasala te we angá.

Ebu ena mene ka wyjej kî wanzej kiã mãj má we pire tetaj pama kubá panzupup kaja mene ikiniã.

Ena panderej mã we pire tetaj pama kubá panzupup mi te kina mene ikini akaja,wyjej kî wanzej kiã mãj kaj mã we pirea.Epi panga anã te panzena gyja we makia mene kaj tete pangue tá.

Tradutora: Tapip Zoró 

Kana  ka hu Pe xine krawa. Ka om pran kamanain wa Pain ka Tati wa ka, kut im Pe wa Pain oro  xek ka piyim kakama oro  narima wrikoko oro  trama ka Tati xine ka ha ne Pain ka  tomi hu wa. Akima na ka Tati kakama Pain oro xek ka oro narima wrikoko oro  trama. Tati pin ho nanain ka ha ne Pain ka papan wa, Kaka, pain wana ka hu xo pin wa kana.

Tradutora: Rosalia Oro Nao

O estudo do capítulo 1 do livro Pedagogia da Autonomia, intitulado: “Não há docência sem discência” constitui uma discussão relevante nos trabalhos da disciplina Didática Intercultural. Representou uma oportunidade de pensar os processos formativos em perspectiva colaborativa, confirmando que “[…]. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. […]”. (FREIRE, 1996, p. 12). E neste processo aprendemos interculturalidade ao acompanhar e vislumbrar os escritos de Paulo Freire produzidos em tantas línguas diferentes.

Considerações Finais

A finalidade deste texto foi apresentar um relato de experiência que envolveu as relações entre aprender e ensinar na perspectiva freireana e seu posterior desdobramento na tradução/aproximação em línguas indígenas, atividade produzida pelos estudantes de 8 (oito) diferentes povos. O processo de tradução/aproximação linguística resultou de uma atividade assíncrona realizada em novembro de 2021 por meio da pesquisa bibliográfica (FREIRE, 1996) e suporte de familiares conhecedores da escrita das línguas indígenas.

No decorrer do processo observamos que um conjunto de apropriações pedagógicas foram se materializando, tais como, a ampliação dos saberes sobre Paulo Freire por meio do contato direto com seus escritos, a discussão sobre as razões da inseparabilidade entre o aprender e o ensinar, a valorização e o aprofundamento das práticas de escrita da língua materna com termos técnicos e a presença do bilinguismo na Educação Escolar Indígena na Universidade.

Deste modo, as reflexões resultantes do pensamento freireano e que depois foram reelaboradas por meio dos escritos em línguas indígenas, talvez aponte para a construção de aprendizagens significativas uma vez que a mensagem textual foi reorganizada a partir das compreensões indígenas.

Referências

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei nº 9.394.  Brasília, 1996.

BRASIL. Resolução CNE/CEB nº 1 de 7 de janeiro de 2015. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores Indígenas em cursos de Educação Superior […]. Brasília, DF, 2015.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa.  26. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

FREIRE, Paulo. Um diálogo com Paulo Freire sobre educação indígena. In: Assembleia do Conselho Indigenista Missionário. Anais […]. Cuiabá: Cimi, 1982. p. 115-151.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: UNESP, 2000.


* Docente no Curso Licenciatura em Educação Básica Intercultural – Universidade Federal de Rondônia joseliagomesneves@gmail.com

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