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Em memória do professor Henrique Rattner

RESENHA

                 

                                                                                         Adelto Gonçalves (*)

Obra reconstitui a trajetória de vida de ex-professor da USP que inclui a odisseia de sua família perseguida por nazistas na Europa

                                                           I

            Para marcar a passagem do centenário de nascimento do sociólogo Henrique Rattner (1923-2011), o jornalista Jair Rattner (1960), seu filho, acaba de lançar Sob as asas da fala e da escrita: histórias da vida de Henrique Rattner (Lisboa, edição de autor, 2023), obra que reconstitui a trajetória de um intelectual que, nascido em Viena em meio a uma comunidade judaica, marcou sua atuação como professor da Universidade de São Paulo e da Fundação Getúlio Vargas, chegando nas duas à posição de professor titular. Trabalhou também, de 1955 a 1967, no Lar das Crianças, instituição da Congregação Israelita Paulista voltada para filhos de famílias carentes que tinham dificuldades para acompanhar a educação da prole.

            Como observa no prefácio, Jair Rattner, em 2000, chegou a fazer algumas entrevistas com o pai, além de pedir informações à mãe e demais familiares e consultar textos sobre refugiados judeus em que o personagem é mencionado. Preocupado em deixar um testamento político, Henrique Rattner chegou a dar entrevistas também para o historiador Roney Cytrynowicz, que ainda não foram recolhidas em livro. Além disso, repassou para o filho textos que talvez sejam a transcrição de gravações  

Ao final do livro, o autor anexou três trabalhos da lavra do pai. No primeiro, de 1971, o mais extenso, com 46 páginas, “Aonde vão as sociedades Leste-Europeias?”, Henrique Rattner analisa o futuro daquelas nações, colocando as reflexões que fez depois de uma viagem, em 1970, à União Soviética e seus países satélites, numa época em que essa missão era pouco acessível a quem não estava alinhado com os partidos comunistas. Fez a viagem depois de participar do X Congresso Mundial de Sociologia, em Varna, na Bulgária.

No segundo texto, “Sobre o desenvolvimento sustentado”, discute um tema que o preocupou, praticamente, durante todos os 60 anos em que desenvolveu a atividade acadêmica, ou seja, a harmonização do desenvolvimento industrial com a questão ambiental e o respeito pelos direitos das pessoas. E no terceiro, “Sobre o Oriente Médio”, analisa um assunto que também o acompanhou durante toda a vida, a paz em Israel e o respeito ao direito de todos os povos que vivem na região, texto que ainda mantém a atualidade.

                                               II

Ao reconstituir a origem da família, o jornalista lembra que seu avô, Baruch, nasceu em 1895 em Hussakow, atualmente Husakiv, na Ucrânia, onde passou a infância numa família de poucos recursos. Ainda adolescente, seria levado para trabalhar em Lemberg, ficando na casa de uma família mais abastada, no centro da cidade. E acabaria se casando com Golde Frimmer, sobrinha da família que o acolhia. Depois, iria viver a 80 quilômetros de Hussakow, em Lviv, que era a principal cidade da Galícia, a parte mais oriental do Império Austro-Húngaro, a uma época de muita instabilidade para o domínio imperial em que a comunidade judaica sofria intensas perseguições e pogroms.

Jair Rattner conta que, quando Baruch tinha 19 anos, um atentado em Sarajevo contra o arquiduque Francisco Ferdinando (1863-1914), herdeiro do trono austríaco, desencadeou a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). “Baruch conseguiu escapar do exército, mas foi trabalhar na fábrica de munições Wöllesdorff, a quase 50 quilômetros ao Sul de Viena, para onde mudou-se junto com sua esposa”, observa, lembrando que, com a derrota na guerra, o Império Áustro-Húngaro foi desmembrado e a Galícia, com sua capital Lviv, incorporada pela Polônia, após a derrota do Exército Vermelho.

A opção da família, então, foi permanecer em Viena, assim como os irmãos de Baruch. Em 1920, ele tornou-se mestre artesão sapateiro e abriu uma oficina nas dependências do pobre apartamento onde morava. Ali nasceram seus três primeiros filhos, Sophie, Heinrich (Henrique) e Leo. Mais tarde, em outro apartamento, nasceria Josef.

                À época, o governo socialista de Viena oferecia um ensino público de qualidade, o que permitiu a Henrique o acesso a obras dos grandes nomes da literatura ocidental. Antes disso, porém, ainda pré-adolescente, teve a oportunidade de estudar no Cheder, uma instituição das comunidades judaicas Ashkenazim (da Europa Oriental), em que as crianças aprendiam a ler em hebraico e ficavam conhecendo as práticas religiosas. “Meu pai destacou-se, pois, em menos de um ano, já dominava o alfabeto hebraico e conseguia ler o livro de rezas. Sem contar que, antes dos sete anos de idade, já tinha começado a ler a tradução dos cinco livros do Pentateuco em ídiche – língua do ramo germânico escrita com o alfabeto hebraico”, conta.

            Por imposição do pai, Henrique aprendeu o ofício de sapateiro, mas o que queria mesmo era continuar os estudos. Com 15 anos de idade, ocorreu, porém, o momento que definiu o seu futuro: a anexação da Áustria pela Alemanha nazista, em 13 de março de 1938. O país foi invadido por tropas de assalto das SA e SS, juntamente com austríacos que tinham aderido ao nazismo e sido treinados pelos alemães depois da tentativa de golpe de 1934, em que tinham assassinado um primeiro-ministro austríaco.

            Com a ascensão do regime de orientação nazifascista e a anexação do país pela Alemanha hitlerista, aumentou a perseguição aos judeus. E muitas famílias judias trataram de procurar sair da Áustria, inclusive a de Baruch. Ele, sua mulher e dois de seus filhos foram para a Suíça com estatuto de refugiados, enquanto Henrique, em setembro de 1938, recém-restabelecido de uma operação de apendicite, também conseguiu escapar da Áustria com um grupo do movimento juvenil judaico, em direção à Palestina. “Foi dos últimos trens organizados pelo movimento juvenil judaico a retirar jovens da Áustria, antes de esse caminho ter sido proibido pelas autoridades alemãs. Cerca de 120 adolescentes de 13 a 16 anos seguiram até Trieste e de lá embarcaram num navio para a Palestina. Menos de uma semana depois da saída deles do país, todas as fronteiras foram fechadas e não havia mais como fugir da perseguição nazista”, conta Jair Rattner.

                                                           III

            Na Palestina, o grupo foi distribuído por vários kibutzim e Henrique colocado em Tel Yossef, um kibutz no vale de Izreel, no centro-norte da Palestina britânica. Logo, ele passou a militar num movimento trotskista, a Liga Comunista Revolucionária, além de trabalhar como sapateiro e, depois, como tratorista no kibutz. Em 1942, começou a namorar Miriam, filha de dois fundadores do kibutz, originários também da Galícia, e que já havia nascido em Tel-Aviv em 1924. Em 1943, casaram-se e continuaram a viver no kibutz.

            Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), aqueles foram anos dramáticos: havia racionamento de alimentos e artigos de higiene e, sobretudo, a incerteza quanto ao futuro, sabendo-se, embora de forma precária, sobre o destino dos judeus que caíram nas mãos dos alemães na Europa Oriental. Com a aproximação do fim da guerra, em 1945, Henrique alistou-se na marinha mercante inglesa, passando a viajar de barco pelos portos do Mediterrâneo oriental controlados pelos aliados.

            Passada a Guerra, Henrique conseguiu dispensa da marinha inglesa e decidiu retornar à Europa, viajando de Beirute para Marselha. Primeiro, esteve na Suíça com os pais e irmãos e conseguiu um emprego como mecânico na empresa Brown Boveri, mas, como não tinha um diploma que atestasse estudos de mecânica, não conseguiu obter o visto de trabalho no país. Logo em seguida, em 1946, seus pais emigraram para o Brasil, onde já se encontrava parte da família. Henrique ainda tentou se estabelecer na França, mas, sem resultado. Viajou então para Bruxelas, onde conseguiu emprego numa retificadora de motores. Na Bélgica, chegou a cursar o ensino superior e participar de reuniões de uma célula da IV Internacional.

            Jair Rattner observa que, mesmo sem dominar completamente o idioma francês, Henrique fez um curso noturno na Escola de Ergologia que oferecia um exame supletivo, que equivalia ao ensino médio, e passou a frequentar como ouvinte a Universidade Popular de Bruxelas, especialmente os cursos do professor Jean Gorenne sobre Dialética e Materialismo Histórico. “E começou também a estudar, por conta própria, o Método de Psicodiagnóstico de Rorschach, de larga difusão entre os psicólogos. Em 1948, deixou o trabalho de mecânico e passou a lecionar hebraico e cultura judaica na École Israelite de Bruxelles”, descreve.

            Em 1951, a pedido do pai, finalmente, viajou com a mulher e o filho mais velho para o Brasil. Henrique e Miriam foram morar com os pais dele e, para sobreviver, passaram a dar aulas de hebraico em escolas da comunidade judaica, contrariando a ideia de Baruch que queria que o filho o ajudasse na sapataria que havia montado em São Paulo. Ao final de 1954, Henrique foi convidado pela Federação Israelita do Estado de São Paulo para cuidar do campo de férias para crianças e adolescentes da comunidade, que se realizava em Poços de Caldas. E, depois de um mês de trabalho, convidado a dirigir o Lar das Crianças.

            Ainda na década de 1950, uma aluna do curso noturno de hebraico, que era assistente da cadeira de Política da FFLCH/USP, intermediou um encontro de Henrique com o professor Florestan Fernandes (1920-1995), que se mostrou decisivo em sua trajetória acadêmica. A partir de então, Henrique procurou um curso de Português e preparou-se para o vestibular. Por sugestão de Florestan Fernandes, escreveu um livro, uma monografia sobre as condições de trabalho dos operários na indústria pesada, redigido em português, o que lhe permitiu prestar o vestibular, mesmo sem que o certificado do exame de segundo grau expedido pelo Instituto de Altos Estudos da Bélgica tivesse sido reconhecido pela Secretaria estadual de Educação.

Passou em primeiro lugar no vestibular, mesmo sem muitos conhecimentos de literaturas brasileira e portuguesa. No exame oral, inquirido pelo professor Antonio Cândido (1918-2017) sobre Machado de Assis (1839-1908), disse que preferia falar sobre Luís de Camões (1524-1580?). E conseguiu impressionar o júri.

            Concluída a graduação em Ciências Sociais em 1960, imediatamente passou a fazer o curso de mestrado em Sociologia, cuja dissertação defendeu em 1963 e que abriu as portas para que passasse a dar aulas em instituições de ensino superior. Em 1964, começou a dar aulas de Sociologia na FGV e de Economia Política no curso de Ciências Sociais da FFLCH/USP. Fez doutorado em Economia Política na USP e pós-doutoramento em Planejamento Urbano e Regional no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT/EUA). 

Depois do golpe militar de 1964, voltou-se para o estudo da economia política e acabou preparando tese de doutorado sobre a concentração industrial no País e a execução das políticas econômicas, influenciado pelas ideias do economista norte-americano J.K. Galbraith (1908-2006). E, em 1969, expôs um trabalho na Congresso Mundial de Estudos Judaicos, em Jerusalém, que, apresentado à FFLCH/USP, valeu-lhe o título de livre-docente. Era um estudo sociológico da comunidade judaica de São Paulo em que discutia a questão da identidade.

            A partir daí, Henrique Rattner cumpriu brilhante carreira como professor universitário, participando e organizando muitos seminários na USP e até no exterior. De 1988 a 1994, durante três mandatos, foi presidente da Associação Janusz Korczac, uma entidade dedicada à divulgação das ideias e da prática pedagógica do educador polonês. Publicou mais de 20 livros e mais de 300 artigos em revistas e jornais, nas áreas de política científica e tecnológica, economia e desenvolvimento sustentável. Sob a supervisão da filha Daphne, em 2012, foram publicados póstumos dois livros seus, um pela Editora da USP (Edusp), Rumos do século XXI: a era das incertezas, e outro pela Editora Senac, Uma ponte para a sociedade sustentável.

                                                                               IV

            Graduado em Jornalismo pela Escola de Comunicação e Artes (ECA/USP), em 1983, Jair Rattner é mestre em Literatura e Cultura Portuguesas – Época Moderna (1993) – e doutor em Ciências da Comunicação (especialidade em Estudos dos Media e do Jornalismo) pela Universidade Nova de Lisboa (2019), com tese que teve por título “Mudando de lado – de jornalista a assessor governamental (2002-2011)”.

            É autor de Verdades Pobres de Tomás Pinto Brandão – edição crítica e estudo, publicado em 2018 pela editora Novas Edições Acadêmicas. Seu trabalho de mestrado foi em Letras – edição crítica e estudo do códice 50-I-11, Verdades Pobres ditas em Portugal, e nos Algarves daquem e dalem America, Africa, Etiopia etc. Primeira Parte. Offerecida à Magestade de elRey D. João V, nosso Senhor em o anno de 1717, que consta do arquivo da Biblioteca do Palácio Nacional da Ajuda, de Lisboa, e reúne poemas do vate barroco (1664-1743). A obra inclui ainda uma “notícia biográfica”, além de explicações sobre o devido cotejo entre as edições originais e papéis que constam de arquivos portugueses.

Nascido em São Paulo-SP, Jair Rattner vive em Portugal desde 1986. Foi correspondente de O Estado de S. Paulo, da Folha de S. Paulo e de O Tempo, de Belo Horizonte, bem como da BBC Brasil, do serviço brasileiro de rádio da Deustche Welle, da Alemanha, e da Revista Pessoa, de São Paulo. Foi também subeditor de Internacional da revista portuguesa Época e esteve no Correio do Brasil, jornal voltado para a comunidade brasileira no país. Antes, foi locutor na Rádio Coreia, em Seul. Foi também presidente da Associação de Imprensa Estrangeira em Portugal.

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Sob as asas da fala e da escrita: histórias da vida de Henrique Rattner, de Jair Rattner. Lisboa: edição de autor, 152 páginas, 2023. Preço do exemplar: R$ 50,00 (mais frete). Pedidos para o autor pelo e-mail: jair.rattner@gmail.com

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(*) Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em terras d´el-rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os vira-latas da madrugada (José Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O reino, a colônia e o poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br

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Legendas:

Fotos: Divulgação

Henrique Rattner (1923-2011): brilhante carreira como professor universitário e intransigente defensor da paz entre os povos do Oriente Médio

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Jair Rattner, jornalista brasileiro radicado em Portugal desde 1988: livro constitui homenagem à memória do pai

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