Crônicas Margarete Hülsendeger Margarete Hülsendeger

OS “PATRIOTAS” II

O fascismo não é impedir-nos de dizer, é obrigar-nos a dizer.

Roland Barthes

Por Margarete Hülsendeger

O termo fascismo tem sua origem na palavra latina fasces, um feixe de varas amarradas em torno de um machado. Na antiga Roma era considerado um símbolo de poder conferido a juízes que podiam ordenar a flagelação e a decapitação de cidadãos desobedientes. No século XX, Mussolini adotou esse símbolo para seu partido e seus seguidores passaram a ser chamados de fascistas.

Até hoje historiadores e cientistas políticos têm dificuldade em chegar a um acordo sobre a natureza do fascismo. O historiador britânico Roger Griffin considera o fascismo uma ideologia fundada em três pontos principais: o mito do renascimento, o populismo-ultranacionalista e o mito da decadência. Segundo Griffin, ele se manifesta por meio de partidos políticos liderados por elites populistas que se opõem ao socialismo e ao liberalismo e prometem salvar o país da decadência. Já para Umberto Eco, o fascismo se basearia no culto a tradição, no medo da diferença, no apelo à frustração social, na obsessão pelo golpismo, no desprezo pelo fraco e em populismo seletivo. Ainda seria possível citar outros estudiosos – Emilio Gentile, Stanley Payne, Robert Paxton – que, a partir de suas próprias pesquisas, enumeram diferentes elementos para caracterizar o fascismo. No entanto, um dos aspectos consensuais entre os pesquisadores é a compreensão de que, no fascismo, o nacionalismo militante ocupa um lugar de destaque. Do mesmo modo, é amplamente aceito a noção de que o fascismo promove um Estado autoritário, tirânico e, até, totalitário. Esses esclarecimentos são importantes para entendermos os fatos que levaram às manifestações ocorridas no Brasil a partir do dia 30 de novembro de 2022.

A Constituição brasileira permite a liberdade de expressão dentro dos limites que estabelece. Portanto, defender uma posição política, lamentar os resultados das eleições ou mesmo demonstrar apoio irrestrito ao candidato perdedor, não é um crime e está garantido pela lei. O problema é quando essas manifestações interrompem vias públicas, colocam em dúvida a isenção das eleições e, em especial, pedem, ou melhor, exigem intervenção militar sem sequer entender o que isso realmente significa.

Essa situação torna-se ainda mais grave quando esses “manifestantes” se acham no direito de apropriar-se de símbolos nacionais, como a bandeira e as suas cores, para se apresentar como os únicos capazes de salvar a nação da decadência moral. Para impor sua visão, eles passam a apoiar qualquer ação que reduza seus opositores ao papel de traidores da Pátria. E não importa o que precisem fazer: montar acampamentos na frente de quartéis, provocar tumultos ou, como ocorreu dia 8 de janeiro de 2023, invadir e destroçar patrimônio público. Para esses grupos os fins justificam os meios, contanto que possam extravasar sua raiva e descontentamento.

Observando os movimentos desses “patriotas verde-amarelo” é possível apontar quatro características que podem identificá-los com o fascismo: o ultranacionalismo, o populismo, a violência e a mobilização. No caso brasileiro, disseminou-se um discurso demagógico de apelo ao nacionalismo (“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”) enquanto, simultaneamente, empresas públicas eram vendidas facilitando a espoliação do país. Além disso, a exaltação do “povo”, apela ao anti-intelectualismo populista que enaltece a capacidade do cidadão comum de julgar temas complexos do âmbito de especialistas. Nesse sentido, é difícil não lembrar dos movimentos antivacinas que tomaram força no Brasil durante os últimos quatro anos ou do sucateamento sistemático da educação e da ciência do país, tornando-o cada vez mais dependente da tecnologia estrangeira. E, por fim, a capacidade de mobilização de milhares de pessoas em torno de uma proposta de governo ultraconservadora, que endeusou a ditadura militar e pregou uma reforma moral e política guiada por igrejas neopentecostais.

O fascismo não é igual em todos os lugares onde ele surgiu. Ele muda, se adapta conforme as circunstâncias e os objetivos. Na Alemanha e na Itália eram anticlericais. Na Espanha franquista e no Brasil dos “patriotas verde-amarelo”, o preconceito religioso era um dos alicerces do governo. No entanto, em todos eles são recorrentes o descaso para com os direitos humanos, assim como a imposição de pautas sociais e políticas que ignoram, e até hostilizam, aqueles que não compactuam com suas ideias e ações. E em todos, o autoritarismo e a intolerância são traços comuns.

Os eventos do dia 8 de janeiro de 2023 apenas tornaram mais evidentes esses traços característicos do fascismo brasileiro. Um dia terrível para a República, quando homens e mulheres invadiram e quase destruíram as sedes dos Três Poderes. Homens e mulheres tão seguros de sua força, contando, quem sabe, com a impunidade, marca triste deste país, que não tiveram problemas em tirar selfies, gravar vídeos e postar nas redes sociais enquanto vandalizavam um patrimônio que não pertencia só a eles, mas a todo povo brasileiro. Triste dia. Tristes imagens. Imagens que me fizeram lembrar de um trecho célebre de uma peça teatral, escrita por Bertholt Brecht, nos anos 1940:

Vocês, melhor aprenderem a ver, em vez de apenas

Arregalar os olhos, e a agir, em vez de somente falar.

Uma coisa dessas quase chegou a governar o mundo!

Os povos conseguiram dominá-la, mas ainda

É muito cedo para sair cantando vitória:

O ventre que gerou a coisa imunda continua fértil!

No Brasil essa “coisa imunda” governou durante quatro longos anos. Aprendamos com esse erro e, além de apenas arregalarmos os olhos e reclamarmos nas redes sociais, sejamos capazes de ver e de agir para que o que aconteceu em Brasília no dia 8 de janeiro de 2023 nunca mais tenha chance de ocorrer. O fascismo é real e ele esteve (e ainda está) entre nós.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

Deixe um comentário