Cultura Livros Margarete Hülsendeger Resenha

QUANDO O TEMPO ACABA

O que espero? Se não uma cura, uma remissão. E o que quero de volta? Na mais bela composição de duas das palavras mais simples do idioma, liberdade de expressão.

Christopher Hitchens

Por Margarete Hülsendeger

O que você faria se recebesse uma sentença de morte? E aqui não estou falando de um virtual criminoso, mas de um escritor que, prestes a dar uma palestra, sente-se mal em um quarto de hotel e, ao ser levado ao hospital, recebe a notícia de que deve visitar, com urgência, um oncologista. Um escritor bem sucedido, respeitado e, até aquele momento, certo de que ainda tinha muita vida pela frente. O que você faria se estivesse no lugar de Christopher Hitchens e descobrisse que tem câncer?

Eu não sei o que eu faria, mas sei o que Hitchens fez: ele escreveu até que a doença o levou. A história de como foi seu último ano de vida é o que encontramos quando lemos Últimas palavras[1]. Um relato impactante de como se vive sabendo que se tem muito, muito pouco tempo. Uma narrativa comovente, sem ser piegas, que narra o que ele sentiu, pensou e fez durante o período que antecedeu a sua morte. Um texto no qual ele se nega a compartilhar clichês e, de forma lúcida, avalia não só o que está acontecendo com seu corpo, mas o que continua ocorrendo fora dele.

Mas quem é Christopher Hitchens?

Se você procurar na internet vai encontrar muita informação sobre ele, por isso vou fazer apenas um breve resumo ao estilo Wikipédia. Hitchens era cidadão britânico de nascimento, mas também assumiu, quando completou 58 anos, a cidadania americana. Ele era jornalista, escritor e critico literário, sendo considerado um dos mais influentes ateus da contemporaneidade. Defendia a liberdade de expressão e a pesquisa científica, afirmando que a última era superior à religião, pois seria uma forma melhor de ensinar ética e definir a civilização humana. Hitchens escreveu e colaborou em mais de 30 livros, incluindo coleções de ensaios sobre cultura, política e literatura. Seu estilo combativo rendeu, em igual medida, admiração e críticas, tornando-se uma figura pública bastante controvertida.

Últimas palavras é, portanto, um livro póstumo que reúne pensamentos e sentimentos de Hitchens sobre a sua doença: um câncer no esôfago ou, como ele o chamava, seu “alienígena cego e sem emoções”. O livro compõe-se de oito capítulos, sendo o último formado de fragmentos deixados incompletos quando da sua morte. Nesse oitavo capítulo é possível ver como ele ainda tinha muito a dizer e discutir. Hitchens descreve como “o alienígena” estava se enterrando dentro dele enquanto escrevia “alegres palavras” sobre a sua morte “prematuramente anunciada”. Do mesmo modo, reconhece que, consciente e regularmente, agiu como se seu corpo não lhe pertencesse e, por conta disso, estava pagando o alto preço de assistir como, dia a dia, ele se deteriorava.

É interessante (e até um pouco assustador) observar como Hitchens debocha de sua condição, desde o momento do diagnóstico até quando descobre que o câncer havia se espalhado para os nódulos linfáticos a ponto de ser possível vê-lo e senti-lo: “Não é nada bom quando seu câncer é ‘palpável’ na superfície do corpo”, escreve. Ele também não tem problemas em refutar a teoria dos estágios de Elisabeth Kübler-Ross, dizendo que, apesar de ter passado pelo estágio de negação, não conseguia se ver “socando a testa, em choque” porque a verdade é que ele provocou a “ceifadora a brandir a foice” na sua direção. Por isso, diz não ter sentido raiva (segundo estágio), mas uma sensação persistente de desperdício porque, além de ter muitos planos, acreditava que “tinha dado duro o bastante para merecer” desfrutá-los.

A doença também não o impede de continuar combatendo o que ele chama de “ilusões religiosas”. Ironiza as mensagens recebidas de pessoas que, apesar de saberem que era ateu, diziam estarem rezando por ele. No entanto, identifica nessas preces um ecumenismo inesperado já que “alguns católicos, judeus e protestantes de boa reputação” acreditavam que ele podia merecer a salvação. Essas manifestações, porém, em vez de encorajá-lo acabavam tendo um “efeito vagamente deprimente” porque se ele “fechasse a conta” estaria “decepcionando todos esses camaradas”.

Com essas palavras, Hitchens deixava claro que a doença, mesmo com todo o sofrimento que vem com ela, não teve a capacidade de alterar suas convicções mais profundas. A religião permanecia sendo um conceito que ele se negava a aceitar afirmando, entre outras coisas, que um homem reza porque acredita que deus “dispôs as coisas todas erradas”, mas confia que “pode instruir deus sobre como corrigir tudo”. Por essa razão, para ele, o maior consolo não está nas orações a um deus no qual não acredita, mas na presença de seus amigos. São eles que, ao não conseguir comer ou beber por gosto, ocupam as suas horas com conversas estimulantes, mantendo sua mente em funcionamento, mesmo quando o resto do corpo está falhando.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

O livro termina com o Posfácio de Carol Blue, esposa de Hitchens. Nele ela recupera os momentos mais importantes do marido ao longo de seu último ano de vida. Relembra o dia que ele se sentiu mal acreditando que estava tendo um ataque cardíaco, o diagnóstico de câncer, sua esperança de estar entre os 5% e 20% com chances de serem curados e nas idas e vindas aos hospitais para receber tratamento ou superar uma crise. Ela também fala da saudade: da voz em casa, da voz de escritor, dos bilhetes espalhados pelo apartamento, das cartas e dos cartões postais. E lembra, em especial, de acreditar, até o último instante, que ele conseguiria superar a doença. Por tudo isso, Blue diz que o fim, assim como a dor, quando chegou, foram inesperados.

Últimas palavras é um livro difícil, não pela linguagem, mas pela complexidade das emoções que ele desperta em nós. No entanto, isso não deveria surpreender o leitor, já que se trata do testemunho de um homem que viveu intensamente, sem nunca abrir mão de seus princípios. Um homem que conseguiu ver a maior parte do que foi escrito sobre ele, algo que, segundo Hitchens, era fascinante, mas com “pouco retorno” já que ele não estaria mais presente para comentar e, muito provavelmente, debochar dessas palavras.


[1] HITCHENS, Christopher. Últimas palavras. Tradução Alexandre Martins. São Paulo: Globo, 2012 (Edição Kindle).

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