Cultura música

Sede se mata a goles pequenos

Gustavo Dumas

 

Gustavo Dumas é escritor e revisor de textos. Publicou, em 2005, assinando como Zeh Gustavo, o livro de poesias “Idade do Zero”, pela Escrituras Editora

A expressão “surgir do nada” parece ser a tônica dos fenômenos musicais fabricados pela indústria do entretenimento, que muitas das vezes não se deixa nortear por qualquer preocupação artística ou cultural. Arte e cultura são conceitos secundários ante à necessidade de pronto atendimento ao lucro imediato que as majors que controlam o combalido setor fonográfico procuram para os seus (ainda) grandes negócios. Nessa lógica de um capitalismo concentrador de muitos recursos na mão de poucos trabalhadores, vendem-se  os “artistas” como um mero produto oriundo de uma linha de montagem – no caso um nome, a marca com que esse produto será posto no mercado. A qualidade, decerto, fica comprometida, a pasteurização impera e a previsibilidade é quase que total.

Para não generalizar por demais, cabe dizer que há bons profissionais, também, alçados à fama instantânea por um investimento forte numa marca preexistente. A cantora e compositora Maria Rita, com um trabalho sólido no cenário da música e, particularmente, do canto, fundou um novo nome artístico após o achado mercadológico intitulado Maria Rita (a Mariano). A homonímia com a filha de Elis Regina fez surgir outro tipo de fenômeno: se não vende como a outra – e aqui não se pretende comparar as respectivas qualidades, e sim destacar o trabalho de uma delas –, Rita Maria emociona demais, pela sensibilidade que suas letras e melodias transmitem. Traz, ainda, um suspiro de renovação.

Genérico de cantora – como ela mesma, com muito humor, se autodefine, invocando seu dia-a-dia de muita luta por espaços num meio concorridíssimo –, Rita Maria lança agora seu primeiro CD, independente na melhor acepção do termo. O álbum compreende 13 faixas, sendo 11 de autoria da própria Rita, sem parcerias – as duas restantes são músicas pouco conhecidas de Djavan e Edu Lobo/Chico Buarque –, e não nega, em sua concepção, doses de um bom amadorismo, que parece ter se perdido na excessiva “profissionalização” (tecnologização, ou mesmo tecnocracismo, eu diria, pelo fato de aspectos circundantes se sobreporem em importância à qualidade da música, letra e melodia, em si) que dominou o mercado da música a partir, sobretudo, da década de 90. Explicando: “Fora de Órbita” é um disco feito com cuidado extremo, construído ao longo de cinco anos, fruto do esmero, do talento e da tenacidade de uma cantora-compositora de grande sensibilidade artística, apoiada por uma pequena trupe de (ótimos) músicos capitaneada pelas cordas (e pela voz, na melhor faixa, “gotas de sereno”) de Zeca Loureiro. O amadorismo se explicita (e cessa) aí, nessa atenção, no carinho dispensado por todos ao projeto, num trabalho quase de artesanato musical.

Já o profissionalismo de Rita Maria é ímpar. O repertório se equilibra entre canções que, no todo, atingem um nível difícil de alcançar num primeiro trabalho. A simplicidade aparece como resultado de um processo que não se furta a pesquisa de linguagem, labuta intelectual e ousadia estética, seguindo um estilo que vai se consolidando no nosso cenário artístico, situando-se num contraponto à agressividade de outros discursos musicais em voga, como funk, hip hop, rap e quejandos.

“Fora de Órbita”, portanto, vem situar Rita Maria à margem das propostas hegemônicas: tanto a de se fazer música por fazer, para entreter, com uma única preocupação, que é comercial; quanto a de se fazer mensagens, expor conteúdos no formato música sem se ater ao principal, que é o suporte linguístico chamado música. Ambas, a meu ver, opções para um fogo rapidamente  consumível. A música de Rita Maria, ao contrário, faz por ficar em cada alma, sussurrando arte.  Alheia aos berros dos sensos e lugares-comuns, fora da órbita facínora do mercado e da arte (?) demagoga, mas no centro nervoso de um itinerário que não permite mais volta, feito de noites que não preenchem, borboletas pretas escritas em code-switching (mistura de línguas num mesmo texto), estradas de névoas e gotas de sereno semeando sonhos e muita vida. Rita é esse todo e quase de imagens, sons, movimentos e silêncios – um misto de pedra rara com nega maluca, enfim. Sem medo de fazer bolhas nos pés tão calejados.

Serviço:

Fora de Órbita – Rita Maria, independente, distribuição da Trattore, R$ 22 (média).

Mais informações: www.ritamaria.com.br.

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