Contos Cultura Johnny Notariano

O trem

Johnny L. Notariano

publicado em 19/05/2008

Johnny Leonardelli Notariano – notarian@usp.br

Os jovens de hoje não conheceram de perto a magia e o romantismo da \Maria Fumaça\. Locomotiva a vapor das décadas passadas, que atualmente só se aprecia em museus, filmes antigos ou lugares onde patrocinam passeios turísticos. Não eram velozes como as atuais, mas econômica, segura e eficiente. O combustível a lenha e fogo, em uma época que não se falava em biocombustível, etanol ou aquecimento global, não comprometia a camada de ozônio responsável pela temperatura e clima de nosso planeta.
Além de servir de transporte para a população, facilitava o escoamento do café entre interior, capital e, marcou um período muito importante na economia em desenvolvimento e no ciclo do café. Os agricultores; sitiantes e fazendeiros, transportavam e recebiam produtos por esse meio de transporte. Hoje muitos lugarejos por onde passavam as \Maria Fumaça\, não existe mais ou empobreceram. Perguntei a alguns jovens na minha região, o que sabiam sobre Dr. Carlos Norberto; Visconde de Soutello e Mostarda. Com tristeza ouvi a resposta, nada sabiam sobre esses ramais, eram localidades por onde passava a \Maria Fumaça\ da Cia. Mogiana.
Foi em um desses momentos, ao ver uma enorme locomotiva em movimento, rápida; barulhenta e sem graça; mal se enxergava as pessoas dentro dos compartimentos, que senti imensa saudade da minha infância e juventude. Mergulhei de corpo e alma no passado e me coloquei dentro de uma dessas saudosas composições. Lembro-me do velho trem como se fosse hoje.
Mês de agosto e como muitas famílias, nós também nos preparávamos para viajar e comemorar uma festa tradicional na última cidade do percurso da ferrovia. Município de Socorro. Hoje faz parte do circuito das Águas Paulista, grande polo turístico da região. O trem vinha de lugares distantes e depois de várias baldeações até Jaguariúna, chegava a Amparo. Interligadas pela estrada de ferro, várias cidades e bairros até o Município de Socorro, comemoravam festas do padroeiro durante todo o mês.
No momento que o trem deixava a cidade de Monte Alegre do Sul, eu não entendia o porquê da \marcha ré\ por quase 1 quilômetro. Era a estação de reversão para que o trem voltasse até a linha direta para a cidade Socorro.
Já extinta na época, tinha o ramal direto para a cidade de Serra Negra. Uma distância curta, esse trem de carga e passageiros, devido as montanhas, fazia o trajeto em aproximadamente uma ou duas horas. Diziam-me os mais velhos, que se praticava \Coope\r ao lado do trem.
Eram festas seguidas nas cidades de Monte Alegre do Sul; Três Pontes e Socorro. Uma verdadeira aventura e as estações lotavam de passageiros ansiosos a espera do trem para embarque. Pessoas vindas de lugares distantes não perdiam essas festas.
Na estação, muita ansiedade, esbarrões e apertos para se encontrar um bom canto até a chegada do trem. Por todos os lados vendedores de doces caseiros; pipocas; amendoins e cocadas ofereciam em bom tom seus produtos.
– Amendoim torradinho, doce de leite e cocadas.
– Comprem, é barato.
Em algum canto da estação a garotada corria sem parar e aproveitava para jogar uma \pelada\ com bola de pano.
As distâncias entre as cidades eram pequenas, mas a considerar pela velocidade da locomotiva, horário noturno, festas e alguns imprevistos, tornavam-se longas. Entrava em cena a criatividade das mães para conter os impulsos do estômago durante a viagem. Para se economizar e não ter problemas, as mães preparavam lanches com os inesquecíveis \pães filão\. Eram vários pães, cada pão media em média 40 centímetros e o recheio era a tradicional mortadela \peito de peru\ ou \bife com cebola\. Eu preferia com alho puro. A sede marcava presença, então, não faltava o litro de água. Muitos levavam litros de café com leite. Refrigerante era coisa de \bacana\ e de final de semana. Não existiam as garrafas térmicas nem os embalados de plásticos e tudo era acondicionado naqueles famosos litros de óleo de cozinha. Muitas mães acomodavam os filhos pequenos no colo com o famoso litro de leite, tampado com aquele conhecido e único \bico de mamadeira vermelho\. Era a chupeta da garotada. Durante a viagem, passageiros conhecidos, trocavam lanches na esperança de mudar, mas parecia que todos tinham produzido a mesma receita. O aroma se espalhava por todo o vagão, mortadela, alho e cebola.
A pontualidade dos embarques e desembarques era Britânica, mas em tempos de festas, o inesperado acontecia, os atrasos eram inevitáveis e com paciência se aguardava.
Os funcionários da estrada de ferro elegantemente trajados com uniforme composto de túnica e um quepe, \Boné de militar\, ostentavam orgulhosamente um relógio de bolso apoiado em uma reluzente corrente dourada ou prateada. Ao serem indagados sobre as horas respondiam gentilmente:
– vinte e uma horas, três quartos e quarenta segundos.
A estrutura administrativa das estações e a arquitetura seguiam os mesmos padrões em toda a rede ferroviária. O Chefe; o Telegrafista; o vendedor de passagens e ajudantes gerais. Na viagem seguiam o Cobrador; conhecido como \picotador\; o Estafeta, o Maquinista e o ajudante de caldeira, este durante o trajeto supria de lenha a fornalha para se formar o vapor. O Estafeta tinha um compartimento especial, era o responsável pelas correspondências. Todos, sem exceção, vestiam elegante uniforme com gravata.
Depois de longa espera, se ouvia ao longe um longo apito seguido de outro mais curto o que significava o trem perto da estação. À luz do dia, a fumaça da chaminé era vista a longa distância. Na trajetória, apitavam para saudar colonos nas fazendas e espantar algum possível animal intruso na linha. Por onde o trem passava, trazia e deixava esperança.
A espera do trem era com muita alegria e na correria, todos procuravam nos vagões o melhor lugar. Nessas ocasiões devido ao excesso de passageiros, muitos seguiam em pé sem constrangimento, mas a boa educação da época e da região proporcionava rodízios e certamente todos se sentavam em algum momento na viagem.
Os privilegiados viajavam em vagões de primeira classe ou quando não se conseguia lugares usavam os de segunda classe. O interessante nessa distinção, na minha região, a única diferença nos trens, Cia. Mogiana, estava na fronha branca colocada nas poltronas de madeira envernizada dos vagões de primeira classe, o resto, era tudo igual. Em outras Regiões eram bem diferenciadas e com vagão restaurante.
As bagagens eram as mais curiosas já vistas. Animais em engradados; aves; galinhas; porcos; cabras; cavalos; latões de leite dentre outras que viajavam em vagões projetados para essa finalidade. Em cada estação havia armazéns onde armazenavam sacas de café; ração, milho, feijão e várias sementes. Os hortifrutigranjeiros e os produtores faziam parte da rotina diária naquele tempo, eram muitas as fazendas produtivas. Comercializavam os produtos por esse meio fantástico de transporte.
Parecia que a festa começava nos vagões durante a viagem. A sineta na estação alertava para a chegada e saída da locomotiva. O telegrafista avisava e anotava no saguão qualquer novidade. Ao deixar a estação o \guarda\ assim era chamado, apitava três vezes antes da partida. O balanço do trem, o ruído que hoje é música saudosa, o apito no caminho, a fumaça o cantarolar de alguém e os casos que prendiam a atenção, são histórias que hoje se conta aos netos.
Em cada estação, mais passageiros e vendedores, embarques e desembarques de mercadorias e gente. Dos armazéns dos produtos estocados, exalava o aroma gostoso do café verde, aroma que sinto até hoje em minhas entranhas.
Diferente de hoje, a moda masculina, destacava-se pelo terno e gravata quase que obrigatório para bem se apresentar nessas viagens. O traje de linho branco era o mais procurado e caro, quem usasse chamava a atenção pela elegância.
A viagem começava e nos vagões, posicionado estrategicamente, tinha sempre alguém experiente, que alertava em bom tom, geralmente um grito.
– Olha o borrão!
Naquele momento todos fechavam as janelas, \quando dava tempo\. Esses borrões eram brasas enormes que saiam pela chaminé e voavam pelos ares durante os apitos do maquinista. Carvões gigantes, incandescentes, vinham direto para os vagões. Os menos avisados eram as maiores vítimas. Ouvia-se entre os passageiros vestido com linho branco um grito de desespero.
– Fecha o vidro, não paguei meu terno ainda!
Outro urrava de dor e mostrava o estrago na roupa e a bolha que se formava com a queimadura. Muitas vezes dava-se a impressão que os passageiros dançavam sem música, uns passos que nunca tinha visto. Mãos nas costas; na cabeça; na roupa, quando se dava conta, era mais uma brasa a se enfiar pela roupa de alguém. Os inesquecíveis borrões! Eu nunca soube de maiores danos, só as bolhas e as roupas perdidas com gigantescos rombos. Eu já me queimei por não fechar a janela. O maquinista depois comentava e ria sem parar.
Muitas histórias se ouviam nessas viagens; muitos fatos pitorescos; muita alegria e nenhum problema; nenhuma violência, tudo era motivo de festa, apesar dos borrões para alguns. As viagens noturnas eram tranquilas, apreciava-se o firmamento, o luar e os vaga-lumes nos campos. Nas viagens diurnas, apreciava-se a natureza; rios; matas; animais; flores e colonos das muitas fazendas que acenavam para os viajantes como alguém a dizer,
– Boa viagem, somos felizes aqui.
A viagem de trem parecia ser encantada, romântica, mágica, repleta de felicidade.
De repente ouvia-se por toda a extensão do trem a voz do cobrador.
– Atenção senhores passageiros, passagens nas mãos, por favor, chegada na estação às vinte e três horas, dois quartos e oito segundos.
– Muito obrigado senhora, muito obrigado cavalheiro, muito obrigado meu jovem.
– Fizeram boa viagem?
Uma verdadeira lição de gentilezas e boas maneiras.
A precisão era Britânica, não fosse pelos atrasos justificados. Alguns não tinham as passagens, se misturavam e se escondiam, pensavam que ninguém os via. Terminava tudo bem, os clandestinos sempre tiveram sorte nessas viagens e os cobradores não se preocupavam.
Chegava a última estação, o nosso destino e de muitos. Essas comemorações atravessavam a madrugada com movimento constante pelas ruas. Os parentes sempre nos aguardavam e da estação todos seguíamos caminhando. Para quem não conheceu, ao chegar, sempre tinha apresentações de Congadas. Eram grupos de pessoas, geralmente da zona rural que vestidos a caráter se apresentavam para os visitantes em homenagem à Padroeira da cidade. Todos enfeitados com laços de cores variadas nos chapéus e roupas; violas; batuques; alegorias com danças típicas; entoavam cânticos de fundo folclórico e religioso. Naquela hora da noite, só não se sabia se estavam se recolhendo ou chegando para as apresentações. Lamento que hoje não se fale mais em Congadas.
Depois da viagem, ao chegar à casa dos parentes, tinha a nossa espera uma mesa farta de café, leite, queijos, bolos, doces e pães caseiros saídos do forno à lenha. Felizes, sem sono, voltávamos à rua para curtir o final da noite. Depois íamos dormir para no dia seguinte continuar a apreciar e curtir os dias de festa. Inesquecível.
Ao final de cada noite, após as comemorações religiosas, aconteciam apresentações pirotécnicas. Fogos, balões, rojões e os conhecidos morteiros, espetáculo para todos os gostos. Durante todo o dia, barracas de ambulantes com tudo o que se possa imaginar. Leilões de animais e aves era rotina. Comidas típicas da região; frutas e bailes com artistas e orquestras famosas nos clubes da cidade. Namoros; flertes; romances; parques de atrações e divertimentos, sem me esquecer dos circos que se apresentavam durante a temporada das festas.
Madrugada, cinco horas, estrela Dalva no firmamento, Vênus, estrela dos apaixonados, conhecida e cantada em versos como \estrela da manhã\. Inspiração de muitos poetas. Em outras épocas chegou a ser confundida com aviões. Grupos de jovens em serenata cantavam o amor no fim de noite. A Banda da cidade brindava os moradores com as memoráveis serestas, o que era normal e rotina durante todas as datas comemorativas. Executavam canções que até hoje ficaram em minha imaginação e marcaram minha infância e juventude junto a familiares, parentes e amigos.
Depois de tudo, fim de festa, o retorno era triste. A caminho da Estação alguém sempre dizia.
– Até a volta!
Na plataforma, a espera do trem não era mais com alegria. Os adultos se tornavam crianças e camuflavam uma lágrima que teimava em rolar pelo rosto. Expressão de tristeza, viagem de volta. O trem já em posição de partida, sem alarido, estava a nos esperar para o embarque. No mais íntimo restava sempre a esperança de voltar, então a viagem no trem se tornava alegre e feliz, outra vez.
Será que algum dia a Maria Fumaça voltará?
Se eu pudesse fazer uma viagem ao tempo, voltaria para nunca mais conhecer o futuro que hoje é o nosso presente.

 

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