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Não há espaço. Sufocamos

parabrisa_molhado

Mara Rovida*

Mara Rovida é jornalista, doutoranda no PPGCOM da ECA-USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo
Mara Rovida é jornalista, doutoranda no PPGCOM da ECA-USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo

Buzinas abafadas pelos vidros fechados e respingados de garoa. Faz tempo que nosso inverno não vem assim tão úmido. O céu parece pesar como se fora teto de construção com pé direito reduzido. O vento frio e molhado pelas gotículas que caem incessantes fazem os ossos doerem. Por isso, Ana Paula segue com as janelas fechadas e o ar condicionado programado para aquecer.
As ruas, avenidas, vias expressas estão repletas de carros e motos. Os ônibus passam ligeiros pelos corredores, mas vão abarrotados de gente espremida feito fardo de reciclável. Não dá para ver dali, mas o metrô também está lotado nessa hora. Não há escapatória, todos os espaços estão ocupados e quase falta ar para respirar.
Tem quem mude de casa para viver mais perto do trabalho. Mas, essa não é uma alternativa acessível a todos. No caso de Ana Paula, é totalmente impossível. Cada semana ela trabalha num canto diferente da cidade e, às vezes, vai além dos limites geográficos da capital. Gerente de promoção de eventos, ela cuida da instalação de estandes temporários e da contratação de pessoal. Começou como “mocinha” de promoção, foi subindo na carreira até chegar ao cargo que ocupa hoje. O que não muda desde sua época de promotora é a aparência, sempre com maquilagem e cabelo impecáveis, roupas alinhadas, sapatos bem cuidados e unhas perfeitas.
Depois de um dia todo em cima do salto, ela troca de sapatos para enfrentar a volta para casa; uma sapatilha é mais confortável. Essa semana, ela está trabalhando no shopping Morumbi e tem de voltar para o Tatuapé às 6 horas da tarde. Caminho difícil.
Depois de dois dias nessa rotina, ela suspira dentro do carro, olha em volta e se percebe impotente. Completamente incapaz de mudar seu destino, seu caminho, sua rota diária, sua vida. Como se a janela abrisse por um segundo e uma lufada fria entrasse repentinamente, ela treme e sente a espinha gelar pela certeza de que não há espaço para nada, nem ninguém. Rendida pelo devaneio que a toma naquele instante, ela vê os motoristas ao redor ficarem roxos e ofegantes. De uma hora para outra, todos começam a sufocar; até que o toque leve de uma buzina a faz despertar.
Primeira, segunda, ponto morto.
Novamente inerte em meio ao mar de carros que tomam cada centímetro da via que corre à beira de um rio podre e fétido, ela pensa….qual a razão para tudo isso? Estaremos fadados a disputar milimetricamente o mesmo asfalto? Devemos seguir nos desentendendo pela mesma vaga no estacionamento lotado do shopping no domingo? Viveremos confinados em apartamentos de 40 metros quadrados, criando um mini-peixe ornamental dentro de um mini-aquário porque é somente essa mini-biosfera que cabe?
Sua própria vida parece sem razão. Apartamento apertado. Dinheiro contado. Rotina estressante. Coração em frangalhos. Nervos falhos. Ana Paula sonhava com uma existência menos, ironicamente, solitária na cidade com densidade demográfica insana, mas eis que teimosamente o cotidiano em São Paulo se encaixava com perfeição ao título de Roberto Pompeu de Toledo, Capital da Solidão.
Primeira, segunda, ponto morto.
O semblante do motorista ao lado não anima quem o observa. A criança na janela do ônibus também parece entristecida. O pedestre atravessa correndo enquanto o trânsito não anda. O motociclista faz malabarismos para passar entre carros largos que transbordam pelas faixas e diminuem o espaço do corredor imaginário.
Primeira, segunda, ponto morto.
Espaço, espaço que falta, espaço escasso, espaço caro, espaço inacessível, espaço para mais um passageiro no ônibus, espaço para mais um carro na faixa, espaço para mais um bebê que nasce. Não temos. Não temos espaço, não temos vagas disponíveis, não temos tempo, não temos ar para respirar. Sufocamos.
 
* Mara Rovida é jornalista, doutoranda no PPGCOM da ECA-USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo.

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