Educação Educação Resenha

Educação ao ritmo da vida

Evelin Gomes da Silva*

Acadêmica de Letras na Faculdade de Comunicação, Artes e Letras (FACALE) Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD)

BRANDAO, C. R. O Que é Educação. 49ª reimpressão. São Paulo: Brasiliensis, 2007, 117p.

O livro “O que é Educação” (2007) é de autoria de Carlos Rodrigues Brandão, psicólogo e doutor em Antropologia pela Universidade de Brasília (UNB). A obra que faz parte da coleção Primeiros Passos, da Editora Brasiliense, apresenta 117 páginas e é dividida em 10 capítulos que visam promover uma reflexão sobre o conceito de aquisição de conhecimento e as práticas educacionais contemporâneas. O livro faz um relato histórico a cerca do processo educacional, exemplificando desde os ensinamentos indígenas, romanos, gregos chegando até os dias atuais.

Já nos primeiros capítulos o autor propõe uma reflexão a partir de versos do livro Grande Sertão: Veredas (1956), de João Guimarães Rosa: “(…) Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende” (p.07). Tal expressão engloba o conteúdo geral do capítulo que exemplifica que ninguém escapa da educação, pois está presente em todo lugar e faz parte do processo de aprendizagem da vida.

“Em casa, na rua, na igreja ou na escola, de um modo ou de muitos todos nós envolvemos pedaços da vida com ela: para aprender, para ensinar, para aprender-e-ensinar. Para saber, para fazer, para ser ou para conviver, todos os dias misturamos a vida com a educação” (p.07).

Para exemplificar, Brandão analisa uma educação ao ritmo da vida proposta por índios norte-americanos, que utilizavam do convívio cotidiano para transmitir suas regras, crenças e valores. Estes receberam a oferta de colonizadores brancos para que enviassem os jovens indígenas a escolas convencionais de educação formal. No entanto, através de uma carta recusaram a proposta. Com argumentos contundentes demonstraram as prioridades de educação para a aldeia e reinteraram que “aqueles que são sábios reconhecem que diferentes nações têm concepções diferentes das coisas” (p.08).

A carta ficou conhecida por muitos. Tanto que Benjamin Franklin, um dos líderes da Revolução Norte-Americana, adotou o costume de divulgá-la. Para o autor, algumas das questões mais importantes discutidas sobre educação nos tempos atuais estão escritas neste documento feito pelos índios, como o fato de não aceitar apenas um modelo de educação, a escola ser o único local de aquisição de conhecimento e o professor o único profissional praticante.

A educação é a construção social de um determinado povo, que tanto pode determinar sua autonomia, dominação ou submissão frente a outros povos. É um dos meios para construir e legitimar o pensamento comum, bem como o processo de produção de crenças e ideias, além de qualificações e especialidades que envolvem as trocas de poderes que, em conjunto, constroem tipos de sociedades.

De acordo com o pesquisador, a educação é uma construção do imaginário dos grupos sociais com a missão de transformá-los e adequá-los à realidade da sociedade em que estão inseridos. Por esse motivo está presente em todo e qualquer lugar que exista redes e estruturas sociais de transferência de saber de uma geração a outra, ainda que não haja o modelo de ensino formal e centralizado.

Para ratificar essa ideia, antropólogos do começo do século pesquisaram culturas primitivas, a vida em sociedade, as relações cotidianas, os ensinamentos tribais, os trabalhos manuais na tribo e as cerimônias religiosas oficiais. No entanto, quase nenhum deles utilizou a palavra “educação” para representar o fenômeno de transmissão de conhecimento de uma geração mais velha para a mais nova. A expressão “ritual de passagem” foi empregada para designar o ato de ensinar dos indígenas. Tal expressão é questionada por Brandão que descreve a dimensão pedagógica das aldeias com conceitos vindos da teoria Behaviorista. Na opinião do estudioso, os ensinamentos educacionais não são limitados e é a partir da convivência e observação dos mais novos que “o saber flui, pelos atos de quem sabe-e-faz, para quem não-sabe-e-aprende” (p.18).

“(…) Nas aldeias dos grupos tribais mais simples, todas as relações entre a criança e a natureza, guiadas de mais longe ou mais perto pela presença de adultos conhecedores, são situações de aprendizagem” (p.18).

A aquisição pessoal de conhecimento do educando que engloba o “saber-crença-e-hábito” de uma cultura, no contexto social de formação do jovem em adulto, funciona como uma situação pedagógica total, denominado pelo autor como “endoculturação”.

No entanto, esse processo necessita ser formatado, formalizado e adequado às situações e regras da sociedade. É o momento em que a educação se transforma em ensino, pois se submete à pedagogia, às teorias, aos métodos e quando são constituídos executores especializados. Surge então a figura do aluno e do professor. Com a determinação desses personagens, o autor destaca que as sociedades que passaram por esse processo perdem a ideia de igualdade natural da educação, passando a delimitar o conhecimento e estabelecem um poder de hierarquização e acumulo de saber nas mãos de poucos, legitimando assim os primeiros passos rumo às desigualdades.

Para exemplificar essa situação, Brandão traça um paralelo entre a educação na Grécia e em Roma, descrevendo como acontecia a divisão do saber. Afirma que a educação grega era dupla, pois se dividia entre o saber tecne – atribuições técnicas restritas à realização de trabalhos manuais (agricultura, artesanato, arte) e formas mais rústicas e menos enobrecidas destinados a escravos e artesãos livres – e o saber teoria – conhecimento aprofundado das normas de vida, que visavam à busca do desenvolvimento intelectual do cidadão nobre, destinado à aristocracia, e o preparavam para plena participação na sociedade.

Já na educação romana prevalecia a unidade: “o trabalho é entre todos e o saber é de todos” (p.48). Assim como os índios, a educação da criança era uma tarefa doméstica. Tradições consagradas da cultura eram passadas de geração em geração e serviam à consagração do tradicional modo camponês de vida, simples e austero. Entre os romanos os primeiros educadores de pobres e nobres eram o pai e a mãe. Essa educação doméstica tinha como foco a formação da consciência moral do indivíduo para viver em uma comunidade igualitária.

Entretanto, a partir do momento que a nobreza abandona a agricultura e se volta para a política, surge a necessidade de serem estabelecidas regras para a organização e desenvolvimento do Império Romano. O primitivo saber comunitário é enfraquecido dando lugar aos mestres-escola que montavam as “lojas de ensino” e vendiam a sabedoria de ler-e-contar como uma mercadoria. A tarefa de educar ficou a cargo de iniciativas particulares, que transmitiam a educação como artifício de conquista, de imposição de ideias de dominação, ampliação de território e formação de guerreiros, fortalecendo assim mecanismos de dominação entre povos.

O autor relata que a educação em Roma só passou a ser questão de Estado após o advento do cristianismo no século IV d.C. Além disso, destaca que a estrutura educacional da época, dividida em ensino elementar, secundário e superior ficou como herança para o sistema contemporâneo de educação.

É somente a partir do sexto capítulo que Brandão direciona seu foco para a educação brasileira. Traz definições acadêmicas sobre o significado da palavra “educação” e a partir de trechos do Boletim Nacional das Associações de Docentes faz um crítica sobre a consolidação da estrutura classista da educação que prima pela desigualdade entre os brasileiros. Menciona leis que estabelecem parâmetros para as práticas educacionais, que para Brandão são artifícios ideológicos que visam atender interesses econômicos de um determinado grupo social.

Para ilustrar essa situação, o autor retoma só que de forma mais detalhada os contextos históricos já mencionados. Com base nas definições de filósofos e educadores, Brandão reflete sobre o dilema “pensar a educação”, além de questionar o que pode estar oculto nos tipos de educação em cada sociedade, especialmente a capitalista.

Dentre as afirmações é possível destacar o pensamento de que a educação consiste, essencialmente, na formação do homem de caráter, sendo um processo vital de contínuo aperfeiçoamento espiritual, intelectual, moral e social. Não podendo ser tratado como uma prática ou propriedade individual. Trata-se, então, de uma prática social que molda sujeitos para viver em sociedade, respeitando e mantendo sua ordem estrutural.

Agora, se a educação visa à formação desse ser social dotado de um pensamento aperfeiçoado, Brandão traz pertinentes questionamentos feitos pelo sociólogo francês Emile Durkheim e que promovem uma reflexão sobre o que pode estar sendo camuflado.

“Se o fim da educação é desenvolver no homem toda a perfeição de que ele é capaz, que ‘perfeição’ é esta? De onde é que ela procede? Quem a define e a quem serve? Por que, afinal, ideais de perfeição são tão diversos de uma cultura para outra?” (p.70).

É a partir desses questionamentos que o autor conclui o que pode estar por trás dos tipos de educação presentes em cada sociedade e a forma com que classes privilegiadas encontraram para legitimar e impor o controle sobre outras classes.

Além disso, o pesquisador apresenta a ideia de que a educação pode ser o meio de promoção de uma mudança social, principalmente, devido à velocidade das transformações impostas pelo atual mundo moderno e tecnológico, que exige uma constante reciclagem de conhecimentos e uma contínua readaptação. Todavia, o autor faz um alerta:

“No entanto, quando a educação é imaginada como “único ou principal instrumento de qualquer tipo de transformação de estruturas políticas, econômicas ou culturais, sem que haja a lembrança de que ela própria é determinada por estas estruturas, estamos diante de pequeno acesso de ‘utopismo pedagógico’” (p. 82).

Ao final, apesar destacar a grande desigualdade entre a população que tem condições de arcar com os custos de uma educação privada e aqueles que recebem os ensinamentos do setor público, o pesquisador acredita que a sociedade capitalista atual pode sofrer alterações. Esta reinvenção, segundo ele, pode surgir a partir de momentos populares, sindicatos e associações de trabalhadores a fim de manter o seu próprio saber e as suas próprias redes de educação. Para Brandão “é entre as formas novas de participação popular, nas brechas da luta política, que, hoje em dia, surgem as experiências mais inovadoras de educação no Brasil” (p.107).

O livro “O que é Educação” traz uma linguagem simples e extremamente didática. Pelo fato de não apresentar termos científicos específicos torna-se uma obra acessível a todos os profissionais da área de educação e ciências humanas que buscam adquirir novos conhecimentos. O periódico mostra-se útil para utilização em aulas de graduação como fonte de pesquisa básica para estudantes, já que traz um relato histórico a cerca dos vários processos educacionais e posicionamentos de clássicos sociológicos, assim como estudos sobre o tema. Além disso, traz uma reflexão sobre o surgimento do sistema de pensar a educação, despertando uma visão diferenciada sobre o assunto.

Carlos Rodrigues Brandão nasceu no Rio de Janeiro em 1940. Formou-se em Psicologia no ano de 1965, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), período em que eram criados os movimentos e centros de cultura popular. A participação direta de Brandão nesses momentos influenciou de forma efetiva suas ideias e práticas posteriores. Trabalhou como professor universitário na Universidade de Brasília (UNB), Universidade Federal de Goiás (UFG) e atua como colaborador do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e professor visitante sênior da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Na área de Antropologia fez mestrado na Universidade de Brasília (UNB), em 1974, doutorado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP), no ano de 1980 e pós-doutorado em Ciências Humana pela Universidade de Perúgia, na Itália, em 1992.

Dentre as principais obras do autor é possível destacar: Os Deuses do Povo: um estudo sobre a religião popular (1982), O que é o Método Paulo Freire (1983), Pensar e Prática: escritos de viagem e estudos sobre educação (1984), A Educação como Cultura (1985), O que é educação popular (2006), entre outros.

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