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Análise epistemológica sobre a estruturação social: opressão e consolidação de valores em torno do capital

Análise epistemológica sobre a estruturação social: opressão e consolidação de valores em torno do capital

Guilherme Henrique Borges de Araújo[*]

Resumo: O presente artigo apresenta uma análise feita a partir de duas obras fílmicas, “Cronicamente inviável” e “Crash- no limite”, mostrando concepções de temas como o multiculturalismo, economia-mundo e sistema-mundo, resultando em transformações dentro da sociedade e consolidações de opressões, desigualdades, preconceitos e violência. As dificuldades de encarar as divergências dentro do sistema do capital e fazer com que aja uma relação direta entre os humanos, não sendo perpassadas por uma política do individualismo e monetária, é o debate que norteia esse artigo.

Palavras-chave: multiculturalismo; desigualdades; sistema-mundo; individualismo.

Abstract: This article presents an analysis made from two film works, “Chronically unfeasible” and “Crash on the edge”, showing conceptions of themes such as multiculturalism, world-economy and world-system, resulting in transformations within society and consolidations of oppression, inequality, prejudice and violence. The difficulties of facing divergences within the capital system and making it a direct relation between humans, not being permeated by a policy of individualism and money, is the debate that guides this article.

Keywords: multiculturalism; inequalities; world-system; individualism.

INTRODUÇÃO:

Reflexões em torno do tema multicultural baseiam-se em mudanças dentro do seio social, a partir dessa problemática analisarei o drama brasileiro “Cronicamente inviável”, dirigido por Sergio Bianchi, lançado no ano 2000, e o drama estadunidense “Crash- no limite”, dirigido por Paul Higgs e lançado em 2005. É necessário o entendimento da lógica dos valores e costumes sociais entre as classes, burguesa e proletária, as marcas deixadas pelo colonialismo em torno da condição branca e seu privilégio perante a negritude, que refletem em desigualdades e instabilidade dentro do sistema. Assim, poderemos compreender os fatores presentes na estruturação do corpo social brasileiro e estadunidense, a consolidação do caráter opressivo da política do capital, e a conjuntura do preconceito, presente na estruturação do corpo econômico e cultural.

 

  1. CRONICAMENTE INVIÁVEL

O filme, “Cronicamente inviável”, se passa em diferentes regiões do território brasileiro, mostrando como a injustiça social é estabilizada como forma cultural. As desigualdades vigentes dentro da sociedade é acompanhada de prerrogativas que justificam sua existência, nesta obra, é usada a lógica da colonialidade para tais justificativas, as marcas de uma economia predatória configuram as diferenças presentes dentro do sistema futuro. As transformações econômicas nunca são feitas de uma vez, algumas características do sistema anterior são presentes no sistema futuro e até mesmo adaptadas a consciência dos sujeitos de seu tempo, Braudel em sua obra, “Civilização material, economia e capitalismo (séculos XV-XVIII), nos explica essa lógica de bases econômicas enredadas, com transformações dentro do meio social, como economia-mundo.

No começo do filme, o personagem do professor Alfredo faz críticas a forma com que a felicidade é acolhida pelo sistema desigual. Em sua fala ele relata, “enquanto o resto do mundo se esforça para dominar as massas, seja pelo capitalismo, socialismo, as guerras, a revolução, até mesmo o consumo, eles(baianos) não. Eles só fazem o suficiente para gerar felicidade, mantem todo mundo pobre”. Entendo o ponto de vista dessa crítica mas não deixo de apontar que são essas mazelas encontradas dentro da economia-mundo que fazem esses cidadãos, que vivem a escravidão contemporânea, se acolherem em simples manifestações de liberdade e felicidade.

O trabalho é uma forma de dominação autoritária, a falta de interesses dos sujeitos, a não consciência de classes pelos indivíduos que sofrem as consequências da “exploração do homem pelo homem”, fortifica a instabilidade do meio social. Desigualdades distribuídas em formas de salário, racismo, xenofobia, entre outras formas de sujeição do homem, nos relata a cumplicidade dos indivíduos, que procuram encontrar meios que justifiquem essas relações violentas e desiguais, a cultura de “bater sistematicamente no mais fraco”.

O caso da Amanda, uma menina de origem pobre, quando se torna gerente de um restaurante em São Paulo abusa da autoridade que possui, maltratando os funcionários e incorporando os costumes e a ética burguesa. Paulo Freire escreve, “o sonho do oprimido é ser o opressor”, como é caso da empregada, Josilene, ao desfilar no carnaval, que apesar do sofrimento que a cada dia é vivido em seu trabalho, surge pequenos sinais de alegria ao ter esperança de um dia se tornar “senhor”. Por meio dessas analogias, é possível compreender que a luta pelos ideais na sociedade do capital é individual, sobressai o privilegio individual e não a melhoria para todos, a importância da propriedade é elevada perante a importância do ser humano, a relação que segundo Sergio Buarque de Holanda nos traz, do brasileiro como homem cordial é a relativização da vida brasileira, em que as inflexões que ocorrem dentro do sistema são camufladas por esse pensamento, como é o caso da miséria sendo transformada em mercadoria, na cena em que Amanda usa dos seus “trambiques” para conseguir empregos aos indígenas, como forma de encaixa-los no sistema capitalista.

Um dos grandes matizes da análise dessa obra é a admiração a Europa que os personagens possuem, há uma desvalorização do Brasil e das pessoas que residem nele. O que fica nítido é a fala de muitos dos personagens expressando que “a culpa não é minha”, não enxergar a estrutura social como algo histórico é fortificar as desigualdades, por mais que alguns personagens possuam valores e querem mudanças, como é o caso da personagem Maria Alice, existe, segundo Immanuel Kant, um relativismo moral, que por mais que existam imperativos categóricos de moralidade no individuo, ele depende de circunstâncias para agir. A mudança de paradigmas nos traz uma equidade social, para os que possuem o poder essa mudança se torna algo temido, a quebra de hierarquias faz com que os homens lutem e destruam, para que um tenha mais poder que o outro, logo, segundo Grosfoguel, “ninguém escapa às hierarquias de classe, sexuais, de género, espirituais, linguísticas, geográficas e raciais do “sistema-mundo patriarcal/capitalista/colonial/moderno”. (2008, p. 118)

  1. CRASH- NO LIMITE

O drama “Crash- no limite”, lançado no ano de 2005 pelo diretor Paul Higgs, se passa em dois dias, remetendo seu foco central na lógica do multiculturalismo presente na sociedade dos EUA. Segundo o autor Stuart Hall, o multiculturalismo “descreve características sociais e os problemas de governabilidade apresentados por qualquer sociedade, na qual diferentes comunidades culturais convivem e tentam construir uma vida em comum”, logo analisaremos as inflexões sociais que são apresentadas neste filme, para assim podermos compreender e, enfim, instigar o intelecto dos leitores para que seja possível melhorias em torno das estruturas desse sistema. Para isso dividiremos a análise em personagens distintos, mas que os preconceitos históricos os unem.

O primeiro é um policial de pele branca chamado Ryan, que abusa dos seus poderes que são atribuídos pela profissão para usá-los como forma de opressão e consolidação de sua condição. Em uma das cenas, Ryan aborda dois negros dentro de um carro, desconta sua raiva na abordagem, após uma ligação que não o agrada, abusando do seu poder para a prática racista, o policial age de má fé. O Estado que segue praticamente á “risca”, do que segundo Grosfoguel é o sistema-mundo, não nos surpreende com a discriminação racial do aparelho opressivo do Estado, até porque é a forma de mantimento das hierarquias dentro do sistema.

A afirmação acima pode ser explicada a partir do segundo personagem que analisaremos, Tommy, um policial branco que aparenta não ser racista mas acaba nos mostrando que as raízes do meio social em que vive, atribuída a imagem da violência á cor do indivíduo, prova o contrário, ao matar um indivíduo negro durante uma carona, por achar que seria morto ou roubado. Tommy, ao enfrentar um dia de trabalho com seu novo parceiro Ryan, nota que seu parceiro não era o que ele pretendia ser dentro da corporação. Ao presenciar um ato racista de Ryan, Tommy se dirige ao chefe de polícia, que é negro, para fazer uma denúncia do ocorrido. Ao relatar todo o acontecimento, o chefe de polícia diz que não pode se manifestar perante a ação racista de seu funcionário, por ser uma corporação racista haveria grandes chances de encontrar barreiras para seguir com a denúncia do ato, ou, até mesmo, perder seu cargo. Isso nos mostra o funcionamento do sistema-mundo, a cumplicidade das pessoas perante esses atos discriminatórios, que são razão de um medo e uma tentativa de proteção existente dentro dessas minorias. Esses atos racistas descritos para um negro, o cala na forma em que surge a problemática da suavização dessas mazelas para o benefício individual buscado no sistema do capital. A raça, é o meio de dominação que a classe burguesa articula de uma forma que persiste por muitos anos para o mantimento do seu poder, segundo Stuart Hall, a raça “é uma construção política e social, é a categoria discursiva em torno da qual se organiza um sistema de poder econômico de exploração e exclusão, ou seja, o racismo”. (HALL, 2003)

O terceiro e último personagem é um proprietário de uma loja, cuja sua etnia é persa, ele é atingido por um ato preconceituoso no começo do filme, quando dentro de uma loja de armas é chamado de “Osama” pelo vendedor norte-americano que não possui nenhum conhecimento sobre os povos e atribui ao persa o título de um árabe, após isso, o persa, reflete essas ações preconceituosas em um homem latino, que estava explicando que o certo seria arrumar a porta, porque era a porta que estava quebrada.

A ligação desses três personagens é algo que representa o sentido desta obra e o funcionamento da sociedade multicultural. O primeiro dos personagens relata o mais simples indivíduo que poderemos analisar, aquele que apesar de não ter uma grande influência no capital, possui uma das bases do privilégio do sistema-mundo, ser branco, homem e heterossexual, e usa disso para propagar seu poderio em cima de outros sujeitos minoritários. Por mais que o segundo personagem também possua esses privilégios ditos acima, ele é uma fonte de tentativa de mudanças dentro desse enraizamento do aparelho social, a violência desse sistema faz com que surja explicações para a ação de Tommy, mas a explicação mais lógica são os traços que a economia-mundo deixa, e é por isso que disse, que ele é a tentativa e não a mudança. O último personagem fecha esse ciclo de opressões no sistema de diferentes culturas. Apesar de ser considerado uma minoria, ele age de uma forma preconceituosa a outra minoria, isso nos mostra a dificuldade do pensar coletivo social. A disputa é individual, a busca é pelo capital e pelo privilégio, isso faz com que essas ações se mantenham presentes na nossa sociedade, é uma espécie de multiculturalismo liberal, “baseado em uma cidadania individual tolerando certas práticas culturais particularistas apenas no domínio privado”. (HALL, 2003)

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As diferentes culturas e diferentes formas de ver o próximo, são as maneiras que as sociedades multiculturais vêm funcionando. É difícil mudanças imediatas dentro da lógica do Estado e do pensamento humano, mas como disse Hegel em sua teoria do idealismo dialético, “a consciência não é estática”, o fato de que com o passar do tempo as formas da consciência humana mudam, é o que dá o mínimo de esperança para enfim alcançarmos uma sociedade em que as diferenças existentes sejam vistas como o belo e não como algo pejorativo. As marcas coloniais vistas dentro da economia dificultam as relações que queremos traçar aos diferentes, a base econômica, infraestrutura, é o que determina a ação social dos indivíduos e suas formas de interação, superestrutura. As inflexões causadas dentro do sistema mudam a lógica econômica e então a consciência do sujeito.

 O fato é, a individualidade alcançada pelo sistema capitalista em busca da acumulação de riquezas traz dificuldades para a contemporaneidade, não somente no que diz respeito às desigualdades, mas também os prejuízos causados a consciência dos sujeitos e a relação que perpassa da luta para o alcance classista almejado até os danos causados à saúde, a problemática que surge em torno dessa questão é uma estranha geração que faz usos do “café para manter-se acordada e comprimidos para dormir”, os transtornos psicológicos é a representação da geração capitalista atual, o status social e a monetarização do que é prazeroso são as características marcantes do século XXI. A solidariedade dentro desse sistema é relativizada, como disse o ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica, em sua entrevista a BBC em 21 de novembro de 2018, “Conseguimos até certo ponto, ajudar essa gente(pobres) a se tornar bons consumidores. Mas não conseguimos transformá-los em cidadãos”. A geração do consumo esconde suas bases egoístas em ações solidárias que não resolvem o problema, apenas o disfarça, logo, pode-se notar que as políticas públicas do sistema capitalista são apenas um antídoto dos defeitos do próprio sistema, ameniza as imperfeições mas mantêm as suas estruturas de maneira consolidante.

 Os protestos e a consciência de classe são formas para a reivindicação daqueles que sofrem com as marcas deixadas por esse modo econômico, e por meio desses fatores construiremos uma relação melhor entre as diferenças, “a pressa em mostrar que não se é pobre é, em si, um atestado de pobreza. A nossa pobreza não pode ser motivo de ocultação. Quem deve sentir vergonha não é o pobre mas quem cria pobreza.” (Mia Couto, 2009). A educação é uma das bases de rompimento com a individualidade desse sistema, devemos nos voltar a uma educação para a solidariedade e as diferenças dos sujeitos e não para a conjuntura, tecnicista visando a produção e a competição entre os indivíduos, que é encontrada no sistema. Não basta apenas pensarmos em torno de teorias educativas, devemos agir para que as transformações sejam possíveis, a mudança do mundo e dos seres humanos é algo interligado, “educar para outro mundo possível é educar para a qualidade humana para além do capital” (Mészáros, 2005).

Referências:

CRASH NO LIMITE. Direção: Paul Haggis. EUA/Alemanha, Imagens Filmes, 2004. 1 filme (112 min.), son.,col.

CRONICAMENTE INVIÁVEL. Direção: Sergio Bianchi. Brasil, 2000. 1 filme (101 min.), son., col.

GROSFOGUEL, Ramon. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. In: SANTOS, Boaventura Sousa; MENEZES, Maria Paula (Org.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009.

HALL, Stuart. A questão multicultural. In: (____). Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

MCLAREN, Peter. Desconstruir a Condição Branca, Repensar a Democracia: Cidadania Crítica na Gringolândia. In: (____) Multiculturalismo revolucionário: pedagogia do dissenso para o novo milênio. (Trad.) Márcia Moraes e Roberto Cataldo Costa. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.

QUIJANO, Aníbal. Dom Quixote e os moinhos de vento na América Latina. Estud. av., Dez 2005, vol.19, no.55, p.9-31. 2005.

MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005.

[*] Graduando de História, 2°período, pela Universidade Federal de Uberlândia(UFU). E-mail: gui.hborges@outlook.com

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