Colunistas Crônicas Margarete Hülsendeger

O QUE ESCONDE O NEGACIONISMO

O QUE ESCONDE O NEGACIONISMO

 

Margarete Hülsendeger

 

Feliz é a vaca que não pressente que, um dia, vai ser sapato. Mais feliz é ainda o sapato que trabalha deitado na terra. Tão rasteiro que nem dá conta quando morre.

Mia Couto

A expressão negacionismo vem da palavra francesa négationnisme, ou seja, a opção consciente de rejeitar a realidade como forma de fugir de uma verdade desconfortável. Geralmente, esse comportamento é motivado por interesses religiosos, políticos e econômicos. Há algum tempo a ciência é um dos alvos dos chamados negacionistas. Houve uma época na qual eles não apenas determinavam o que podia ser estudado, como eram responsáveis diretos por prisões e até sentenças de morte. Vamos a alguns exemplos.

O físico e matemático Galileu Galilei (1564-1642) foi forçado a renegar suas teorias sobre o movimento dos planetas porque filósofos e teólogos, a soldo da Igreja Católica, defendiam uma concepção de mundo baseada na ideia de que a Terra e, portanto, o homem, era o centro do universo. Aliás, além de abjurar diante de um tribunal constituído, na grande maioria, por membros da Igreja, ele também foi condenado a permanecer em silêncio até o dia de sua morte, isto é, não pôde publicar e nem ministrar aulas. É interessante destacar que essa injustiça só foi reparada séculos depois, mais especificamente em 1979, quando o papa João Paulo II expressou a esperança de “dissipar a desconfiança que ainda se opõe, em muitas mentes, a uma concordância frutífera entre ciência e fé”[1].

O longo processo ao qual foi sujeito Galileu (1610-1633) ocorreu porque uma instituição poderosa – como era a Igreja Católica – negava-se a aceitar outra visão de mundo que não fosse a dela. O reconhecimento dessa nova realidade significaria abrir mão de um enorme poder e prestígio, resultando não só na perda de seguidores, mas na possibilidade de outros dogmas serem questionados. O medo de perder poder já havia suscitado, alguns anos antes, uma atitude bastante radical contra outro livre pensador que ousara colocar em dúvida aspectos essenciais da doutrina católica. Estou me referindo ao teólogo e filósofo italiano Giordano Bruno (1548-1600), queimado na fogueira por defender não apenas a existência do pluralismo cósmico, mas a própria sacralidade da eucaristia. Portanto, por detrás de todas essas atitudes, consideradas “piedosas” por seus defensores, vamos encontrar interesses escusos ou, no mínimo, suspeitos que exigiam o silenciamento da ciência em prol de um “bem maior”.

Lamentavelmente, se avançarmos um pouco no tempo continuaremos a ver os negacionistas em ação.

Desde o momento que Charles Darwin (1809-1882) publicou A origem das espécies (1859) passaram a existir grupos cujo objetivo era negar as possibilidades apontadas pela teoria do biólogo inglês. Os criacionistas, como passaram a ser chamados, defendiam que um ser sobrenatural teria criado o homem e os demais seres vivos já na forma atual há menos de 10 mil anos e que os fósseis (inclusive de dinossauros) são animais que não conseguiram embarcar na Arca de Noé a tempo de salvarem-se do dilúvio. E mesmo que diversos teólogos, ao longo dos anos, já tenham afirmado que a Bíblia não deve ser tratada como um documento científico, ainda existem muitos defensores do criacionismo em pleno século XXI. Baseados mais em convicções religiosas do que em provas científicas, eles se esforçam em negar todo e qualquer fato relacionado com a evolução das espécies.

Criacionistas, assim como os terraplanistas, são indivíduos que ao estarem cegos e surdos a quaisquer argumentos, fecharam suas mentes ao diálogo e ao compartilhamento de experiências e informações. Infelizmente, tentar discutir com eles é como debater com um bloco de concreto, repetindo-se a situação enfrentada por Galileu quando tentou dialogar com os “sábios” da Igreja. Contudo, a questão que se impõe é descobrir quais interesses que movem os criacionistas: será que é apenas um caso de fanatismo religioso ou algo mais sinistro?

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

Como exemplo mais recente dessa onda negacionista temos a questão do aquecimento global. Aqui não estamos tratando com teorias ou hipóteses, mas com fatos reais que podem ser observados, medidos e até previstos. Em 1997, quando o Protocolo de Kyoto foi assinado, avisos foram dados no sentido de controlar as emissões de dióxido de carbono para reduzir o efeito estufa, a principal causa do aquecimento global. Depois, em 2014, novamente a ONU alertou para as graves consequências do fenômeno, entre elas a elevação dos oceanos, alterações climáticas drásticas e perdas agrícolas. No entanto, os chamados “céticos”, encabeçados pelos Estados Unidos da América, responsável por 58% das emissões de CO2, apesar de todos os alertas, continuam afirmando que as mudanças climáticas são parte do ciclo normal da Terra e não se pode associá-las a ações humanas. Essa negação norte-americana atualmente é reforçada pelo presidente Donald Trump. Segundo ele, todos esses avisos têm como objetivo atrapalhar o progresso e o desenvolvimento dos países industrializados. Trump, assim como foi G. W. Busch, é o exemplo típico do que o negacionismo pode provocar, ou seja, a disseminação de ideias sem nenhum embasamento científico, mas em sintonia com interesses à serviço de grupos preocupados apenas com ganhos financeiros.

Com esses poucos exemplos pode-se perceber que o negacionismo não é coisa do passado. Ao contrário. Ele está muito presente, manifestando-se de diferentes formas, em diferentes lugares e pela boca de diferentes indivíduos. Por essa razão, quando observamos governantes menosprezando, repetidamente, o parecer de inúmeros especialistas, inclusive de organizações sérias como a OMS, podemos afirmar que estamos diante de uma das formas mais cruéis de negacionismo. Cruel porque não se está falando sobre o movimento de planetas ou se o homem tem como parente distante o macaco, está-se tratando com vidas humanas, com a sua preservação. Aqueles que negam sólidas evidências científicas estão colocando em risco a vida de milhares de pessoas. Esse comportamento poderia ser admitido no século XVII, mas não agora, não quando temos à nossa disposição o conhecimento necessário para prever a evolução de uma doença ou uma catástrofe climática. Quem quer aplicar ao século XXI as regras de três séculos atrás, peca pela falta de confiabilidade, talvez de respeito.

O negacionismo, como disse no início deste texto, é gerado por interesses políticos, religiosos e econômicos. Desse modo, a pergunta que devemos nos fazer é: quais os interesses que estão atrás dessas reiteradas negativas? Essa é a pergunta que deve ser feita e para respondê-la você precisa estar bem informado. E quando digo “bem informado” não estou falando de notícias encaminhadas pelo Whatsapp, mas de análises formuladas por especialistas respeitáveis, de reconhecido saber, pessoas capacitadas para dizer o que precisa ser dito e não o que você quer ouvir.

[1] Disponível em: https://www.journals.uchicago.edu/doi/10.1086/383771. Acesso: 12 maio 2020. Tradução livre.

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