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KAFKA NO JAPÃO

KAFKA NO JAPÃO

Margarete Hülsendeger

Cada um de nós continua perdendo algo muito apreciado. Oportunidades importantes, possibilidades, sentimentos que nunca mais serão recuperados. Isso é parte do que significa estar vivo.

Haruki Murakami

Quando penso no Japão três imagens, quase sempre, vêm à minha mente: samurais, gueixas e Hiroxima. As duas primeiras foram impressas no meu cérebro ocidental por conta, principalmente, de filmes – a maioria deles produzida por estudios norte-americanos – que representam o povo e a cultura japonesa de forma bastante estereotipada. A última tem mais a ver com o meu conhecimento de história da ciência, já que em Hiroxima explodiu a primeira bomba atômica no dia 5 de agosto de 1945, um evento que marcaria de forma permanente a ciência como uma potencial “destruidora de mundos”. De qualquer forma, o fato é que sei muito pouco (pouquíssimo!) sobre a história e os costumes japoneses.

Devido a essa ignorância, há algum tempo decidi sair da minha zona de conforto e dar uma chance à literatura japonesa contemporânea. Como não tinha qualquer referência na época, utilizei o “Oráculo da Modernidade”, mais conhecido pelo nome de Google. Para minha surpresa, encontrei não só vários nomes interessantes, como descobri que o Japão tem no seu “currículo” três Prêmios Nobel de Literatura: Yasunari Kawabata (1899-1972), Nobel de 1968; Kenzaburo Oe (1935), Nobel de 1994; e Kazuo Ishiguro (1954), Nobel de 2017.

Com essas informações, iniciei minha jornada pelo premiado Kazuo Ishiguro. Não querendo correr muitos riscos, escolhi como primeira leitura um de seus livros mais conhecidos, O gigante enterrado (2015). E posso dizer que acertei em cheio![1] A escrita de Ishiguro me impressionou tanto que acabei lendo mais dois livros do autor: Não me abandone jamais (2005)[2] e Um artista do mundo flutuante (1986). Também devo dizer que, após essas três leituras, concordo plenamente com a avaliação da pesquisadora da Unesp, Silvia Mara Tellini, quando diz que “seus romances falam dos limites da humanidade e problematizam como dar sentido a um mundo que parece sem sentido. Ainda mais em tempos de extremismos políticos e ideológicos”[3]. Portanto, se você quer um livro instigante, brilhantemente escrito e hipersensível, leia Kazuo Ishiguro. Não vai se arrepender.

Depois de algum tempo, percebi que conhecer apenas um dos representantes da literatura japonesa não era suficiente, pelo menos para mim. Assim, voltei ao Google e, entre as várias sugestões que ele oferece, descobri o nome de um autor, não só popular, mas também merecedor de diversos prêmios, com obras traduzidas para mais de 50 idiomas, Haruki Murakami (1949). Um de seus livros mais famosos é a trilogia 1Q84. Os três volumes somam mais de mil páginas (boa leitura para quem ainda está respeitando o isolamento social) e são uma homenagem à obra-prima de George Orwell, 1984. Trata-se de um romance distópico centrado nos encontros e desencontros de dois personagens, a menina Aomane e o menino Tengo. Não ofereço mais detalhes porque 1Q84 não foi a minha opção de leitura quando resolvi dar uma chance a Murakami. Na verdade, fui atraída por outro livro, principalmente, porque achei o título intrigante, Kafka à beira-mar (2008)[4].

Em uma de suas entrevistas[5], Murakami comenta que, apesar de gostar de ler autores e obras realistas, quando escreve prefere abordar temas que exploram o subconsciente. De acordo com ele, essa não é uma escolha proposital, mas algo que surge da sua necessidade de mergulhar dentro de si mesmo, um processo que, além de visar a satisfação do autor, deve permitir que o leitor também compartilhe profundamente essa experiência. Para Murakmi, esse processo só atinge o seu objetivo quando o romance é extenso, porque apenas assim sua capacidade transformadora será perceptível, um efeito que ele observa em si mesmo entre os momentos em que começa e termina de escrever.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

Em Kafka à beira-mar estão presentes alguns dos efeitos citados por Murakami, assim como muitos outros, dependendo do grau de sensibilidade de cada leitor e, consequentemente, de sua capacidade de interpretação da obra. Assim, no início da leitura já se percebe que estamos diante de uma história na qual realidade e fantasia se misturam a ponto de não sabermos quando uma termina e a outra começa. Além disso, o autor, ao criar uma série de enigmas – seguindo um modelo semelhante ao do gênero policial –, mantém acessa a curiosidade do leitor: porque o protaganista – um menino de 15 anos chamado Kafka Tamura – fugiu de casa? O que teria acontecido na infância do velho Nakata para que ele tivesse esquecido até mesmo de ler e escrever? Porque, de repente, chove peixes e sanguessugas? Existe alguma relação entre esses eventos e as histórias de vida de Kafka e Nakata?

Um leitor com uma mente mais cartesiana talvez espere respostas diretas e objetivas a todas essas perguntas. Se esse for o seu caso, esqueça: as respostas não são realmente importantes. A relevância está em compreender que estamos mergulhados em um mundo onde respostas do tipo sim/não, bom/mau, branco/preto, morte/vida não têm o menor sentido. Um mundo semelhante àqueles momentos entre o sono e a vigília, quando estamos com um pé em cada um desses universos e, ao mesmo tempo, não estamos em lugar algum.

No entanto, apesar das sensações oníricas que muitas das passagens do livro despertam, Murakami não esquece que seus personagens fazem parte da raça humana e, portanto, com necessidades e sonhos bem humanos. Além disso, sendo japonês (nasceu em Quioto), mas vivendo nos Estados Unidos, ele faz questão de inserir na obra uma série de referências à cultura ocidental – a filosofia de Hegel, a música de Bethoven e Haydn, o teatro de Shakespeare e Sófocles –, ao mesmo tempo em que cita e descreve lugares e sabores típicos do Japão – a ilha de Honshu, Nogata (bairro de Tokio), os udon (macarrão com caldo de peixe), sopa de miso (massa de soja fermentada). Para Murakami, essas referências são necessárias porque na sociedade atual, onde não faltam informações dos mais diversos tipos, carregamos um “gigantesco reservatório cultural”. É desse reservatório que o autor retira elementos com o potencial de se tornarem ícones, transpondo-os para as narrativas onde assumirão uma função simbólica. Por isso, em Kafka à beira-mar não deve surpreender o aparecimento de personagens com nomes que nos remetem a grandes símbolos da sociedade ocidental, como, por exemplo, Coronel Sanders (fundador da Kentucky Fried Chicken) e Johnny Walker (marca famosa de uísque). Conforme Murakami, esses ícones, por ultrapassarem as diferenças linguísticas, culturais, políticas e ideológicas, são compartilhados quase que instantaneamente pela maioria das pessoas, permitindo uma maior identificação.

Desse modo, ao acompanhar Kafka e Nakata nas suas respectivas jornadas, o leitor tem a oportunidade de conhecer não apenas um pouco do Japão, como também de refletir sobre questões que nunca saem de moda: morte, solidão, amor, amizade, sexo, responsabilidade para consigo e com o outro. As histórias de Kafka e Nakata também nos dão a chance de olhar através de duas janelas, dando acesso a duas realidades que, apesar de parecerem distintas, convergem para uma única, a nossa. Como disse antes, Kafka à beira-mar não é um livro no qual você vai encontrar respostas ou um final fechado e definitivo. Contudo, as dúvidas e perguntas que ele irá suscitar são um excelente material de reflexão. Embarque nessa viagem de autoconhecimento, junto com Kafka e Nakata, você vai se surpreender com o que irá encontrar. Boa travessia!

[1] Escrevi uma resenha sobre esse livro para PARTES em 2018. Se você estiver interessado ele está disponível em: https://www.partes.com.br/2018/02/06/entre-mundos/.

[2] Em 2010, o livro virou filme com a direção de Mark Romanek , tendo Carrey Mulligan, Andrew Garfield e Keira Knighttlet nos papéis principais.

[3] Disponível em: https://ufmg.br/comunicacao/noticias/kazuo-ishiguro-e-agraciado-com-o-nobel-de-literatura. Acesso: 7 set 2020.

[4] MURAKAMI, Haruki. Kafka à beira-mar. Tradução Lica Hashimoto. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2008 (576 p.)

[5] Disponível em: https://www.blogdacompanhia.com.br/conteudos/visualizar/Uma-conversa-com-Haruki-Murakami. Acesso: 2 set 2020.

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