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ALÉM DA NOSSA PELE

ALÉM DA NOSSA PELE

Margarete Hülsendeger

 

Seja qual for a maneira que escolhamos para pensar o corpo social, somos o meio ambiente uns dos outros. A imunidade é um espaço compartilhado – um jardim do qual cuidamos juntos.

Eula Biss

No dia 13 de novembro de 1904, no Rio de Janeiro, estourou uma revolta popular que recebeu o nome de “Revolta da Vacina”. Em mais um episódio bizarro da história brasileira, a população insurgiu-se contra a obrigatoriedade da vacinação em massa no combate à varíola. O que desencadeou esse tumulto foram as medidas implantadas pelo médico sanitarista Oswaldo Cruz (1872-1917) que, contrariando a opinião de vários dos seus colegas, defendia que muitas das doenças que assolavam o Brasil – febre amarela, peste bubônica e varíola – eram transmitidas por “vetores”, ou seja, mosquitos, pulgas e ratos. Naquela época, a maioria dos médicos acreditava que essas doenças eram disseminadas por meio das roupas, do suor, do sangue e das secreções dos doentes.

Oswaldo Cruz, tendo estudado no Instituto Pasteur, sustentava que, para tratar essas enfermidades, era preciso recorrer a procedimentos considerados radicais: isolamento dos doentes, imediata notificação dos casos positivos, captura dos vetores, desinfecção das residências em áreas endêmicas e, a medida mais polêmica, a aplicação de vacinas. Seus métodos foram criticados por vários jornais e até mesmo o Congresso se manifestou desfavorável a eles. E como se não bastasse todos esses movimentos hostis, chegou-se a formar uma “liga antivacinação”. No entanto, hoje sabemos como essa história terminou. Além das estratégias implantadas por Oswaldo Cruz terem sido reconhecidas internacionalmente, em 1907 a febre amarela foi erradicada do Rio de Janeiro e, em 1908, quando surgiram os primeiros casos de varíola, as mesmas pessoas que se insurgiram contra a vacinação em 1904 correram para os postos de saúde para serem vacinadas.

Portanto, a grande pergunta é: o que mudou de 1908 para 2020/2021? Por que, de repente, um método consagrado pela comunidade científica está sendo questionado a ponto de muitas pessoas reproduzirem um comportamento semelhante àquele observado em 1904?

A escritora americana Eula Biss procura responder a essa e outras questões em seu livro Imunidade: germes, vacinas e outros medos (2014)[1]. A obra me foi indicada por um amigo no início de abril de 2020 quando estávamos começando a sentir os rigores do isolamento imposto pela pandemia provocada pelo Covid-19. Eu a li assim que a tive em mãos e até fiz uma breve referência a ela em um dos meus textos[2], porém, naquele momento, não tive vontade de escrever sobre o que havia encontrado em suas páginas. Talvez, ainda não estivesse disposta a aceitar que estava testemunhando algo muito semelhante ao que ocorrera com Oswaldo Cruz em 1904. Quem sabe, inconscientemente, ainda acreditava que, passados mais de cem anos, teríamos aprendido com os nossos erros e estaríamos blindados contra conspirações absurdas que desmerecem os avanços da ciência. Contudo, passado um ano e tendo percebido que a história se repetia, decidi voltar a esse livro, procurando, ao escrever sobre ele, detalhar algumas das ideias expostas pela autora.

Biss inicia dizendo que somos protegidos não tanto pela nossa própria pele, mas, principalmente, pelo que está além dela. Dessa forma, a ação de uma vacina não se limita apenas à maneira como ela afeta um corpo, mas como influencia o corpo coletivo de uma comunidade. Contudo, apesar de a imunidade de grupo ser um fenômeno observável, para muitas pessoas ela ainda parece implausível, já que veem seus corpos como “inerentemente desconectados de outros corpos”. Em razão disso, Biss identifica duas formas de afrontar o que ela chama de “princípio de imunidade”: a “mentalidade de rebanho” e a “mentalidade de fronteira”. Enquanto a primeira acredita que a ação de uma vacina não afeta apenas um corpo, mas todo um grupo social, a segunda imagina os corpos como fazendas isoladas das quais cuidamos bem ou mal. Do mesmo modo, se na segunda a saúde do outro não nos afeta desde que a nossa seja bem cuidada, na primeira há a certeza de que a nossa saúde está profundamente interligada à saúde de nossos vizinhos.

Essas duas formas diferentes de pensar o “princípio de imunidade” tem provocado debates que, muitas vezes, são apresentados como debates sobre a integridade da ciência quando, na verdade, trata-se de uma disputa pelo poder. Segundo Biss, no século XIX os grupos sociais mais atingidos pelas medidas sanitárias eram os negros e os pobres, que sofriam ameaças e pressões de todos os tipos: multas, prisão e até apreensão de seus bens caso não se vacinassem. Assim, durante muito tempo, uma campanha de vacinação obrigatória despertava nas pessoas temores relacionados à perda de seu direito mais básico, a liberdade sobre o seu próprio corpo. Ao resistirem a vacinação mantinham a ilusão de que não estavam se entregando a “inimigos desconhecidos”. Como explica a autora: “Nossos medos são informados pela história e pela economia, pelo poder social e pelo estigma, pelos mitos e pesadelos. E, como acontece com outras crenças arraigadas, nossos medos nos são caros”.

São esses medos que dão força à “ciência fraca”, ou seja, à que não tem respaldo em pesquisas sérias, com resultados comprovados e reproduzíveis. Seu único propósito é “dar credibilidade falsa a uma ideia em que queremos acreditar por outras razões”. Para ilustrar esse “fenômeno”, Biss lembra como o gastroenterologista britânico Andrew Wakefield, em 1998, passou a divulgar que a vacina tríplice, produzida por empresas farmacêuticas, estaria ligada a uma síndrome comportamental que incluía sintomas de autismo. Essa teoria, nunca comprovada, deu suporte às suspeitas de pais que já acreditavam que as vacinas eram inseguras. Ademais, reforçou a ideia equivocada de que aquilo que cura pode provocar danos e que a soma da ciência nem sempre é o progresso.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

Fazendo um contraponto, Biss escreve sobre outro médico, o pediatra Paul Offit. Ela narra que, em uma entrevista, ele contou ter examinado duas crianças hospitalizadas com gripe. As duas tinham sido imunizadas contra tudo na infância, menos contra a gripe. Segundo o médico, ambas acabaram em aparelhos de coração e pulmão, mas uma sobreviveu e outra morreu. Por isso, ao ser questionado sobre a necessidade de respeitar o desejo do paciente de não ser vacinado Offit responde: “Pode-se respeitar o medo. O medo das vacinas é compreensível. Mas não se pode respeitar a decisão – é um risco desnecessário”. O que ele quer dizer parece claro: ao respeitar a decisão de um indivíduo de não querer se vacinar não se está colocando em risco apenas a saúde daquele que decide, mas de toda uma comunidade, já que nossos corpos não são, como disse Biss, pequenas fazendas isoladas e invioláveis.

Essas são apenas algumas reflexões que podem ser extraídas da leitura de Imunidade: germes, vacinas e outros medos. Em tempos sombrios como os que estamos vivendo é importante reforçar a necessidade de pensarmos além dos nossos interesses individuais. Qualquer imunologista sabe que uma pessoa não tem material genético para reagir a todas as doenças, mas os seres humanos, como coletivo, possuem variedade genética suficiente para que a humanidade sobreviva a qualquer enfermidade. É preciso, portanto, irmos além dos limites impostos pela nossa pele e acreditarmos que, ao contrário do que ditam nossos preconceitos, as doenças não são produto daqueles que nos acostumamos a chamar de “outros”, mas de como atuamos dentro da coletividade.

[1] BISS, Eula. Imunidade: germes, vacinas e outros medos. Tradução Pedro Maia Soares. São Paulo: Todavia, 2017.

[2] Disponível em https://www.partes.com.br/2020/05/10/sobre-a-ciencia/

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