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Gestos de catarse

“não é o chiste rasa coisa ordinária; tanto seja porque escancha os planos da lógica, propondo-nos realidade superior e dimensões para mágicos novos sistemas de pensamento” Guimaraes Rosa in Aletria e hermenêuticas – Tutaméia

Por Gilberto da Silva

O golpe que derrubou a presidente Dilma Rousseff abriu e descancarou uma porta difícil de fechar. Imaginávamos que a situação não seria boa e sim, primeiramente, temerosa. Temer-osa em todos os sentidos. Sabíamos que as coisas seriam complicadas, mas não imaginávamos que seria tão horrível.   Uma massa – logo transformada em uma analogia pecuária – foi tomada pelo ódio, preconceito e contaminada pelo tóxico – e não defensivo- político.  Os sinais estavam dados, mas pouco visto e ouvido. Questões de interpretação.

E veio a substituição da faixa presidencial e ele, o Temeroso, com seus dedos ágeis, saiu e deu espaço e vida para o Jumento, este agora devidamente com faixa.  Para quem ainda não sabe, o Jumento é um asno, uma subespécie doméstica do asno selvagem africano e lá pelas bandas do nordeste brasileiro é conhecido popularmente como jegue ou jerico. Daí uma ideia de jerico… Enfim, um animal usado como transporte de carga, sela e tração.

O retrato falado, no caso escrito, deste período excremental, distópico e alienante é descrito no livro Jumento com faixa: deboches e antiodes ao fascismo, organizado por Zeh Gustavo e Rafael Maieiro e que conta com a participação de 33 poetas de diferentes cidades brasileiras: Alberto Sobrinho, Alexandre Guarnieri, Amanda Vital, Amora Pêra, André Vallias, Áurea Alves, Bruno Borja, Diego Barboza, Divanize Carbonieri, Eduardo Sinkevisque, Filipe Manzoni, Guilherme Zarvos, Henrique Rodrigues, Ítalo Lima, José Brandão, José Henrique Calazans, Katyuscia Carvalho, Letícia Becker Savastano, Luis Maffei, Manoel Herzog, Manuela Oiticica, Marcelo Reis de Mello, Maria Célia Barbosa Reis da Silva, Mariana Blanc, Mauro Iasi, Nuno Rau, Pádua Fernandes, Pedro Rocha, Rubermária Sperandio, Sandro Félix e Thamires Andrade.

Pensem num desfile de escolas de sambas na Sapucai. Cada poeta é como uma nova agremiação que entra na avenida e o samba enredo é às vezes recomendado para recordar o óbvio e recorrer ao lírico, satírico, aos zombadores da tristeza, observadores de estrumes alheios, premeditadores do caos, regurgitadores de fakenews e malditos escritores de manifestos antifascistas.

Na arquibancada, o leitor pode “malhar o jumento” ou saborear as páginas do livro da forma que preferir, dado que o verbo e o adjetivo percorrem todas as estrofes do samba anti-animal juramentado. Todas as letras te levarão ao grito anti ou “não sem antes um não”. Um apoteótico não ao jumento, ou ao inominável e aos governantes de lives.

Pensem, outrossim, numa dionisiaca apresentação do Teatro Oficina e sintam os poemas perfilando as estreitas passarelas do teatro da resistência tentando sobreviver ao cheiro de enxofre.

Todas as qualidades ou não qualidades, referentes ao produto jumento com faixa são elencados nas páginas deste delicioso contemporâneo manifesto antimessiânico. Ou seria o livro um embrião de uma quase-frente única, ampla antifascista?

Da coragem para nos brindar com obra tão poderosa podemos pensar, refletir e até zombar: a democracia está salva. Mas e o povo?

Sem lambebotismo, recomendo a leitura do livro.

LIVRO
Título: Jumento com Faixa: deboches e antiodes ao fascismo
Organizadores: Rafael Maieiro e Zeh Gustavo
Editora Viés
Ano: 2021
ISBN: 978-65-89476-23-8
Páginas: 176
Preço: R$ 40,50

Gilberto da Silva é editor da Revista Partes.

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