Crônicas Margarete Hülsendeger Margarete Hülsendeger

A LOUCURA DE CADA DIA

A loucura é vizinha da mais cruel sensatez. Engulo a loucura porque ela me alucina calmamente. Clarice Lispector

Por Margarete Hülsendeger

Borderline. Narcisismo. Fobias. Histeria. Paranóia. Essas são apenas algumas das neuroses e dos chamados transtornos de personalidade que compõem a lista da DSM, Manual Diagnóstico e Estatístico dos Problemas Mentais. Apesar de ser elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria, esse guia tem importância internacional porque ajuda no treinamento de profissionais que trabalham com a saúde da mente – psicólogos, fonoaudiólogos, médicos e terapeutas ocupacionais. A última versão saiu em 2013 (DSM-V), substituindo o DSM-IV criado em 1994 e revisado em 2000.

O Grito – Obra de Edvard Munch

Essa nova edição trouxe algumas novidades. A primeira foi acrescentar aos transtornos já existentes, sete outros possíveis diagnósticos: transtorno de acumulação, transtorno da oscilação disruptiva do humor, transtorno da compulsão alimentar periódica, transtorno de hipersexualidade, transtorno de arrancar a pele, transtorno alimentar restritivo evitativo e a adição à internet. A outra novidade foi a mudança de alguns nomes: integração dos diagnósticos do espectro autista (substituindo “transtorno do espectro do autismo”), transtorno de identidade de gênero (substituindo a expressão “disforia de gênero”) e desordem de aprendizagem (substituindo os diferentes diagnósticos que envolvem dificuldades de aprendizagem na leitura, escrita, fala e matemática).

Ao passar os olhos pelo sumário do DSM-V, em especial, a “Seção II – Critérios, Diagnósticos, Códigos”, fica difícil não se perguntar se existe alguma pessoa que ainda possa ser considerada “normal”?

A pergunta pode parecer estranha ou, no mínimo, capciosa. Afinal, para a maioria das pessoas o anormal é sempre o outro. Quantas vezes já não rotulamos alguém de maluco ou “fora da casinha” só porque sua atitude foge do padrão estabelecido pela sociedade? Para muita gente, o “normal” é etiquetar, marcar, pois assim, os outros, os diferentes, é que são os anormais, os dignos de pena.

No entanto, se deixarmos de lado velhos e batidos preconceitos, veremos que está cada vez mais complicado estabelecer diferenças significativas entre comportamentos normais e anormais. Em outras épocas, por exemplo, a melancolia era considerada uma emoção comum, geralmente associada a pessoas românticas. Hoje, é provável que uma pessoa melancólica seja diagnosticada como depressiva e tenha de ser acompanhada por um terapeuta. Do mesmo modo, quem tem coragem de atirar pedras em quem não desgruda do celular e das redes sociais? Há dez anos esse comportamento não teria sentido, mas na atualidade usar a internet de forma descontrolada se tornou um caso sério para quem trabalha com a saúde mental.

Como não sou psicóloga ou psiquiatra, acredito que o melhor caminho é sempre o “caminho do meio”, ou seja, o equilíbrio. Sentir-se triste (ou melancólico) nada tem, do meu ponto de vista, de doentio. Nem sempre acordamos alegres; às vezes, queremos ter o direito de usufruir de momentos mais introspectivos para refletir sobre a vida ou as coisas que nos incomodam. É preciso lembrar que ninguém é linear o tempo inteiro. A normalidade é uma oscilação de humor e isso inclui a pessoa manifestar algum sintoma “estranho” de vez em quando. O problema, portanto, não está na tristeza em si, mas na forma como lidamos com ela.

De qualquer maneira, o fato é que existem diferentes tipos de transtornos mentais pipocando por aí, dos mais leves até os mais pesados. Os próprios médicos dizem que qualquer um que resolva procurar um psicólogo ou psiquiatra tem grandes chances de ser diagnosticado com algum tipo de problema mental ou emocional. A lista da DSM-V, só no que se refere às neuroses, é imensa: fobias diversas, histerias e obsessões variadas. É praticamente impossível não se identificar com alguns dos sintomas relatados. Do mesmo modo, é difícil encontrar alguém que não tenha algo mal resolvido em sua vida: um pai (ou mãe) intolerante ou permissivo demais, uma infância pobre ou muito cheia de privilégios e, quem sabe, um professor rigoroso que não soube entender a genialidade de seu aluno. O que não faltam são traumas, ou, como dizem os psiquiatras e psicólogos, fontes de futuros problemas mentais.

Por essa razão, retorno à pergunta feita antes: será que ainda existe alguma pessoa nesse planeta que possa se dizer “normal”? A resposta mais honesta é um sonoro não! A normalidade, assim como a felicidade, é um estado ideal em um mundo cheio de desafios e obstáculos a serem superados. Para alcançar esse estado nirvânico, antes seria preciso preencher três condições básicas: (1) aceitar os nossos defeitos com tranquilidade, (2) não ver a diferença como uma ameaça e (3) acreditar que os nossos pais fizeram, na medida do possível, o melhor por nós.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

Parece fácil, mas todos sabem o quanto é complicado vencermos nossas limitações e nos tornarmos uma versão melhor de nós mesmos. Por isso, acredito que os consultórios médicos ainda permanecerão um bom tempo cheios de pacientes buscando uma “cura” ou o simples alívio para os seus conflitos mentais e emocionais. No entanto, se você tem pressa em fugir da loucura e se unir à fileira dos “normais” talvez devesse pensar no que diz Millôr Fernandes: “A única diferença entre a loucura e a saúde mental é que a primeira é muito mais comum”.

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