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Entre a Ciência e a Poesia

Ninguém sabe que lendo revivemos nossas tentações de ser poeta. Todo leitor, um pouco apaixonado pela leitura, alimenta e recalca, pela leitura, um desejo de ser escritor. Quando a página lida é bela demais, a modéstia recalca esse desejo. Mas o desejo renasce. De qualquer maneira, todo o leitor que relê uma obra que ama sabe que as páginas amadas lhe dizem respeito.

Gaston Bachelard

Margarete Hülsendeger

Se alguém acredita que gavetas, armários, cofres, cantos ou conchas não são temas ideais para fazer poesia, sinto informar que está enganado. Todos esses espaços tornam-se, no livro A poética do espaço (1957), do filósofo francês Gaston Bachelard (1884-1962), assuntos não só poéticos, como transcendentes.

Bachelard queria ser engenheiro, mas a Primeira Guerra Mundial o impediu e, para sobreviver, tornou-se professor de química e física no que hoje, no Brasil, é o Ensino Médio. No entanto, aos 35 anos sua vida deu uma nova guinada e ele começou a estudar filosofia, especializando-se em filosofia da ciência. É dele a expressão “obstáculos epistemológicos”, ou seja, as dificuldades que o homem de ciência deve superar para que se estabeleça e se desenvolva uma mentalidade científica. Para Bachelard, esses obstáculos só seriam vencidos se ocorresse uma “ruptura epistemológica” entre a ciência moderna e o senso comum, única garantia do sucesso de uma pesquisa científica.

Em uma de suas obras mais famosas, A Formação do Espírito Científico (1938), Bachelard deixa claro que ciência e poesia são dois mundos diferentes, que devem ser mantidos separados para benefício da objetividade do conhecimento científico. Todavia, com a passagem do tempo, o filósofo sentiu-se cada vez mais atraído pelo imaginário poético, passando a escrever sobre esse lugar especial onde ciência e poesia se cruzam e onde razão e sonho convivem em relativa harmonia. A água e os sonhos (1942), O ar e os sonhos (1943), A poética do devaneio (1961), assim como A poética do espaço (1957) são apenas alguns dos livros nos quais Bachelard tratou não só da poesia, mas do complexo universo da imaginação.

De forma didática pode-se, então, dividir a sua obra em dois tipos: a diurna e a noturna. Enquanto na primeira Bachelard defende a objetividade e o racionalismo na ciência, na segunda ele se dedica ao estudo da imaginação poética, dos devaneios e dos sonhos. Nas suas obras noturnas encontraremos frases como essa: “Nossa alma é uma morada. E quando nos lembramos das ‘casas’, dos ‘aposentos’, aprendemos a ‘morar’ em nós mesmos”. E é sobre a casa e os espaços que existem dentro dela o principal tema do livro, A poética do espaço[1].

A casa, semelhante a um ninho ou uma concha, é um lugar de intimidade. Mais do que uma construção material, é um espaço onde nos sentimos acolhidos e que mantém “o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida”. Reconhecer esse espaço é também reconhecer-se. Compreender as suas diferentes dinâmicas é experimentar algo que vai além do sonho e que está, segundo Bachelard, no campo do devaneio, pois a “casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa nos permite sonhar em paz”.

Dentro da casa encontraremos a eterna criança que reside em nós, “o país da Infância Imóvel”. Mesmo quando a abandonamos, ela permanece como parte do nosso imaginário, com sótãos e porões que escondem seus próprios segredos. Para o filósofo, enquanto o sótão é o lugar de camundongos e ratos, o porão é onde residem “os seres mais lentos”, e onde o medo se faz mais presente. Contudo, apesar da escuridão que esses espaços muitas vezes albergam, eles devem, de acordo com Bachelard, ser experimentados, com a poesia assumindo a função de nos sensibilizar para eles.

Mas a casa ainda guarda muitos mistérios. As gavetas, os armários, os cofres são, igualmente, espaços de intimidade, atribuindo-se a eles, inclusive, uma memória na qual o passado, o presente e o futuro estão condensados. Em determinado momento, Bachelard me fez lembrar do experimento mental conhecido como “Gato de Shoredinger”, quando diz que “haverá mais coisas num cofre fechado do que num cofre aberto”. Conhecedor da física moderna, em especial dos conceitos associados a Teoria da Relatividade, utilizou essa imagem do cofre para nos demonstrar que tudo depende do observador e do lugar de onde essa observação é feita, pois a “verificação faz morrer as imagens. Sempre, imaginar será mais que viver”.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

No entanto, o ex-professor de ciências também alertou para o desgaste das imagens quando são mal empregadas. Considerava, por exemplo, pobre a ideia de ver as gavetas apenas como a imagem da compartimentação do conhecimento; tratava-se, segundo ele, de “um pensamento morto”. Do mesmo modo, afirmava que na literatura a imagem do ninho era uma infantilidade. Entendia, portanto, que todas as metáforas mal utilizadas levavam a ideias estereotipadas, desqualificando o processo imaginativo. Para Bachelard, a “metáfora é uma falsa ideia já que não tem a virtude direta de uma imagem produtora de expressão, formada no devaneio falado”.

A poética do espaço é um livro belíssimo, mas complexo. É preciso estar atento e não ter vergonha de voltar atrás nas páginas lidas, para melhor compreender o que o filósofo quer nos comunicar. Contudo, a sonoridade das frases, o conteúdo das ideias, provoca na mente mais objetiva e cartesiana o desejo de vivenciar essas experiências que estariam restritas aos poetas. Bachelard reconheceu que todo o leitor recalca o desejo de ser um escritor. Talvez, o filósofo tenha, em algum momento, identificado, em meio à objetividade científica que tanto defendeu, o desejo íntimo de ser um poeta, esquecendo, assim, do formalismo e da rigidez científica, para dar espaço à arte de fazer e viver a poesia.


[1] BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. In: Os pensadores. Tradução Antônio da Costa Leal e Lídia do Valle Santos Leal. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

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