Crônicas Margarete Hülsendeger Margarete Hülsendeger

NÃO AO EFEITO MATILDA

Dizer que tudo está bem, ou então que as coisas nunca vão melhorar, são maneiras de não ir a parte alguma, ou de tornar impossível ir a qualquer lugar.

Rebecca Solnit

Por Margarete Hülsendeger

Em fevereiro, em evento que marcava o Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência, o secretário-geral da ONU, António Guterres[1], lembrou que as mulheres representam menos de um terço da força de trabalho na ciência, na tecnologia, na engenharia, na matemática e ainda menos em áreas de vanguarda. Além disso, as mulheres recebem um número inferior de bolsas de pesquisa em relação aos seus colegas do sexo masculino e, apesar de representarem um terço dos pesquisadores em nível global, ocupam apenas 12% das cadeiras nas academias científicas nacionais.

Para piorar essa situação, que por si só já é inquietante, Guterres, em março, declarou sua preocupação sobre o futuro das mulheres. Segundo ele, serão necessários 300 anos para alcançar a igualdade de gênero, pois os “avanços obtidos em décadas estão evaporando diante dos nossos olhos”[2]. Para ilustrar essa afirmativa, ele cita o Afeganistão, onde mulheres e meninas estão sendo “apagadas da vida pública”; a guerra na Ucrânia que afeta “em primeiro lugar” as pessoas do sexo feminino; e o cyberbulling, que dissemina na internet desinformação misógina e mentirosa. Todos esses movimentos, segundo o representante da ONU, tem um único objetivo: silenciar as mulheres.

Essas informações assustam, mas não são uma novidade. Há muito tempo as mulheres vêm sofrendo todos os tipos de discriminações e preconceitos. No século XIX, por exemplo, uma ativista americana chamada Matilda Josylin Gage (1826-1898), publicou o ensaio intitulado Woman as inventor (1870), no qual demonstrou como as contribuições das mulheres na ciência eram, com frequência, atribuídas aos seus colegas homens. Esse texto, mais de 100 anos depois, chegaria as mãos de Margaret W. Rossiter, uma professora de História da Ciência da Universidade de Cornell, que, a partir de seus próprios estudos, chegou às mesmas conclusões de Matilda. Por essa razão, Rossiter cunhou, em 1993, o termo “Efeito Matilda”, ao se referir a esse preconceito que atingiu, e ainda atinge, muitas mulheres, em diferentes áreas do conhecimento.

Nos estudos de Rossiter, assim como em outros que surgiram depois, foi demonstrado que cientistas homens citam mais frequentemente publicações de autores homens do que de autoras mulheres. Na Holanda, Itália, Estados Unidos e Espanha, apenas para citar países onde algumas pesquisas foram realizadas, também se constatou que o sexo do candidato influencia na avaliação feita deles. Do mesmo modo, investigadores suíços confirmaram que os meios de comunicação costumam pedir mais contribuições a cientistas homens do que a cientistas mulheres. Todos esses casos não apenas exemplificam o Efeito Matilda, como também dois conceitos formulados por Rossiter: “segregação hierárquica” e “segregação territorial”.

A “segregação hierárquica” é um fenômeno bem conhecido, pois se refere ao fato de que quanto mais se sobe na escala de poder e prestígio, menos se vê mulheres. Há, nessa situação, a presença de uma espécie de barreira invisível que dificulta e, muitas vezes, impede que mulheres cheguem a cargos de autoridade. Em pesquisa realizada pela Trademap, entre 50 empresas do setor financeiro, dos 1.043 executivos (diretoria e conselho de administração), apenas 154 são mulheres e, dessas companhias, 10 não têm uma mulher na gestão[3]. Por isso comemorou-se a indicação de Tarciana Medeiros para a presidência do Banco do Brasil (BB) e de Rita Serrano para comandar a Caixa, pois essas indicações representam uma luz no fim do túnel quando se trata da presença feminina em cargos de liderança no setor financeiro.

No caso da “segregação territorial”, as mulheres estariam reunidas em grupos, delimitando áreas nas quais sua presença seria estimulada, tolerada ou rejeitada. Um exemplo ilustrativo era de que enquanto os homens saíam para trabalhar, as mulheres deveriam ficar em casa cuidando dos afazeres domésticos. Todas as mulheres que ousaram questionar essa territorialidade, saindo dos limites aos quais estavam presas, foram punidas de alguma forma. Rossiter menciona o caso de Trotula de Salermo, uma médica italiana do século XI, hoje considerada a mãe da ginecologia. Durante muito tempo, os textos de Trotula foram atribuídos a autores homens, chegando-se ao ponto de até a sua existência ter sido negada. No século XX, temos o caso de Marie Curie, que só recebeu o Prêmio Nobel de Química devido à insistência do marido, Pierre Curie, e de um membro da Academia Sueca, o matemático Magnus Gosta Mittag-Leffler. Já a física austríaca Lise Meitner não teve a mesma sorte, porque, aproveitando-se da Segunda Guerra e do fato de ela ser judia, seus colegas Otto Hahn e Fritz Strasmann não mencionaram sua participação decisiva na pesquisa da fissão nuclear, excluindo-a do Prêmio Nobel de Química.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

“Igualdade de gênero precisará de 300 anos para ser alcançada”, foi o que disse o secretário-geral da ONU em março deste ano. É difícil aceitar tal declaração quando se pensa no quanto as mulheres têm lutado para mudar esse cenário. Contudo, o sr. Guterres trabalha com dados colhidos no mundo todo; logo, a questão não é discutir a veracidade dessas informações, mas o que podemos fazer para mudar esse quadro porque, como ele mesmo diz, o patriarcado sempre “contra-ataca” diante de qualquer avanço. Nesse sentido, vale a pena lembrar das palavras de bell hooks: para acabar com o patriarcado é preciso primeiro reconhecer que “todos nós participamos da disseminação do sexismo”. E quando ela diz “todos nós” se refere a homens e mulheres. Portanto, para provocar uma transformação é preciso, antes de tudo, nos “desapegarmos de pensamentos e ações sexistas”, substituindo-as por “pensamentos e ações feministas”. Apenas quando esse movimento ocorrer é que uma mudança real será possível. Lutemos, então, para que a profecia de Guterres não se realize e as mulheres possam ser plenamente reconhecidas por seu valor, não importa a área em que escolham atuar.


[1] Disponível em https://news.un.org/pt/story/2023/02/1809607. Acesso: 07 março 2023.

[2] Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2023/03/igualdade-de-genero-precisara-de-300-anos-para-ser-alcancada-diz-secretario-geral-da-onu.shtml. Acesso: 07 março 2023.

[3] Disponível em: https://valorinveste.globo.com/mercados/renda-variavel/empresas/noticia/2023/02/22/presenca-feminina-no-setor-financeiro-cresce-mas-segue-baixa.ghtml. Acesso: 16 março 2022.

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