Direito Trabalho

Inc. II do art. 8º da CRFB: o último resquício do autoritarismo no Direito do Trabalho?

César Augusto Hülsendeger*

Resumo

A unicidade sindical é criticada pela doutrina, por contrariar a liberdade sindical prevista na Convenção nº 87 da OIT e apresentar-se antinômica frente à CRFB. Introduzida no Brasil pela Constituição de 1937, inspirada na Carta del Lavoro, não se confunde com unidade sindical, pois esta pressupõe liberdade de criação, organização e filiação sindical. Filiando-se à opinião da maioria da doutrina, defende-se a revogação do dispositivo, por antinomia com a CRFB, com os direitos fundamentais reconhecidos aos trabalhadores pela mesma e por configurar tentativa de tutela do Estado sobre os trabalhadores.

Palavras-chave: Unicidade sindical; liberdade sindical; direitos fundamentais; Convenção OIT nº 87.

Resumen

La unicidad sindical es criticada por la doctrina, por contradecir la libertad sindical prevista en el Convenio nº 87 de la OIT y presentarse como antinómica frente a la CRFB. Introducida en Brasil por la Constitución de 1937, inspirada en la Carta del Lavoro, no puede confundirse con la unidad sindical, ya que ésta presupone la libertad de creación, organización y afiliación sindical. Alineándose con la opinión de la mayoría de la doctrina, se defiende la derogación del dispositivo, por su antinomia con la CRFB, con los derechos fundamentales reconocidos a los trabajadores por la misma y por configurar un intento de protección del Estado sobre los trabajadores. .

Palabras llave: Unicidad sindical; libertad sindical; derechos fundamentales; Convenio de la OIT núm. 87.

Introdução

O inciso II do artigo 8º da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) condiciona a organização sindical a um único sindicato por categoria profissional em cada base territorial (mínima de um município).

A maioria da doutrina é frontalmente contrária ao dispositivo, advogando sua revogação – e a ratificação da Convenção nº 87 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) –, por entendê-lo incompatível com a liberdade sindical.

No entanto, há ao menos um jurista pesquisado entendendo que essa revogação e a ratificação da Convenção nº 87 não trará a liberdade sindical almejada. Outra dupla de doutrinadores entende que a unicidade seria cláusula pétrea, dificultando sua revogação.

Entende-se, ainda, que a imposição da unicidade sindical pelo Constituinte materializa a tentativa, ao menos, do Estado de tutelar[1] o trabalhador e sua atividade, como se esse fosse um incapaz.

Essas proposições seriam cabíveis? Realmente há entraves à liberdade de organização sindical no Brasil? Existe intenção do Estado de tutelar o trabalhador?

Isso é o que este trabalho pretende esclarecer, começando pela diferença entre unicidade e unidade sindical e ligação dessa com liberdade sindical. Em seguida, num breve histórico, abordará como e por que a unicidade sindical ingressou na Constituição brasileira, trazendo algumas opiniões de doutrinadores juslaboralistas acerca da necessidade da revogação do inciso e sua substituição pela Convenção da OIT. Após, apresentará uma opinião sobre o assunto, para concluir pela possibilidade e necessidade da revogação da norma, por se configurar em verdadeira tentativa do Estado em tutelar o trabalhador, como se esse fosse um incapaz.

Para isso, se utilizará do método dedutivo e de revisão bibliográfica de alguns autores, e pesquisa da presença ou não do dispositivo nas Constituições brasileiras desde 1891, para se verificar a validade das hipóteses de que o inciso em comento cerceia a liberdade sindical, sendo antinômico com a CRFB, e se, no mínimo, induz a intenção do Estado de tutelar o trabalhador, em especial a sua organização.

Unicidade x unidade: qual a diferença?

A unicidade sindical é, talvez, a norma da CRFB tocante à organização sindical mais criticada pela doutrina. A maioria dos doutrinadores da área entende que essa disposição, além de ser contrária à liberdade sindical como conceituada pela Convenção nº 87 da OIT[2], é antinômica com o próprio caput do art. 8º (“É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:”).

Assim, ao impor condições à formatação da organização sindical, a CRFB deixa de assegurar liberdade sindical, sobrando aos sindicatos talvez apenas uma autonomia relativa. E ao exigir a unicidade em base territorial mínima, com a delimitação de categoria profissional conforme previsto no caput do art. 511, in fine, combinado com o § 2º da CLT[3], praticamente elimina a liberdade de trabalhadores e empregadores criarem seus sindicatos livremente nos termos do art. 2 da Convenção nº 87 da OIT.

Para bem entender-se a questão, conveniente explicitar o que seja a unicidade sindical, diferenciando-a da unidade sindical. Para isso, valemo-nos do texto que dá origem a este trabalho, de autoria do Prof. João Cláudio Monteiro de Brito Filho (2019, p. 464-469): unicidade é a existência de uma única entidade sindical representativa do mesmo grupo, em determinada base física, por imposição estatal, cada grupo de trabalhadores E de empregadores representado por uma única entidade cada, na mesma base territorial. Já a liberdade (ou pluralidade, como diz o doutrinador)sindicalpermite a existência de mais de um sindicato representativo de cada grupo na mesma base, com mais de um sindicato para cada categoria na mesma base, ou um único, mas por decisão da categoria, não por imposição estatal.

Vê-se, portanto, que a diferença entre uma e outra é um tanto sutil: a imposição estatal em favor da unicidade.

Um pouco de história

E de onde vem a unicidade? Como e quando começou?

A primeira Constituição da República dos Estados Unidos do Brazil (sic. BALEEIRO, 2001) nada dispôs a respeito de organização sindical, salvo a regra do § 8º do art. 72:

Art 72 – A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:

§ 8º – A todos é lícito associarem-se e reunirem-se livremente e sem armas; não podendo intervir a polícia senão para manter a ordem pública.

Baleeiro (2001, p. 31. Tb. LINS, 2009, p. 410) noticia que Tasso Fragoso, nos primeiros dias da República, teria discursado que “a ‘nova filosofia’ tinha como ‘objetivo imediato’ o de ‘incorporar o proletariado à sociedade moderna’”, traduzindo a filosofia positivista que impregnou a formação da República Velha. Porém, apesar da visão positivista – predominante entre os militares da época, mas não entre os civis, segundo o próprio Baleeiro – o que permaneceu foi o texto de Ruy Barbosa, ancorado nas Constituições dos EUA, da Suíça e da Argentina (BALEEIRO, 2001, p. 29), divergindo do que Porto refere como o “exagero positivista de considerar livre o exercício de todas as profissões” (PORTO, 2001, p. 27) prevista no § 5º do art. 74º, complementado pelos §§ 12º e 17º do mesmo artigo da então Constituição do Rio Grande do Sul (RIO GRANDE DO SUL, 2022).

Talvez aí se encontre a raiz da omissão quanto à existência de alguma norma tratando da organização dos trabalhadores: o fato de tanto os liberais da linha de Barbosa, quanto os positivistas da linha castilhista – não pelos mesmos motivos – serem ferrenhos defensores da liberdade individual. Talvez por isso – a defesa da liberdade – é que a Constituição da República Velha tenha-se omitido quanto a regras para a organização sindical. E porque os sindicatos – como conhecidos hoje – ainda eram incipientes no final do século XIX (NASCIMENTO, 2011).

Nas primeiras décadas do século XX, a agitação trabalhista que se acentuava nos grandes centros, a Revolução de 1930, logo após à Crise de 1929, e o convencimento do governo quanto à necessidade de diminuir a influência dos trabalhadores estrangeiros (“especialmente o anarcossindicalista, socialista, comunista ou trotskista”, grifo no original) sobre o movimento operário brasileiro, são fatos significativos que, conforme Nascimento (2011), levaram ao início da intervenção estatal nas relações sindicais. E essa intervenção se materializou numa política de substituição de conflitos pela filosofia de integração de trabalhadores e empresários “organizadas pelo Estado sob a forma de categorias por ele delimitadas segundo um plano denominado enquadramento sindical”(NASCIMENTO, 2011).

A partir daí, os sindicatos passariam a colaborar com o poder público, publicizando-os para, sob controle do Estado, evitar a luta entre capital e trabalho. Porém, a Constituição de 1934 criou um “hiato, meramente formal, e curto, no período intervencionista”, conforme Nascimento (2011), ao garantir, em seu artigo 120 (POLETTI, 2001, p. 162), a pluralidade sindical e a autonomia aos sindicatos:

Art 120. Os sindicatos e as associações profissionais serão reconhecidos de conformidade com a lei.

Parágrafo único. A lei assegurará a pluralidade sindical e a completa autonomia dos sindicatos.

Esse dispositivo (BONAVIDES & ANDRADE, 1990, p. 325-327; SILVA, 2011, p. 69; VILLA, 2011, p. 50-51; POLETTI, 2001, p. 19) teria sido influência da Constituição Mexicana de 1917 (MIRANDA, 1990, p. 263-264 e 267-268), da de Weimar de 1919 (id., ib., p. 285 e 292) e dos ventos favoráveis aos direitos sociais que sopravam na época. Porém, Nascimento (2011) aponta a existência, ainda, de uma série de restrições à plena liberdade e autonomia sindicais, por exemplo, a presença permanente de um delegado do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio nas assembleias sindicais.

Apesar de inovar, a Constituição de 1934 não chegou a surtir efeitos, pois substituída pela dita Polaca, a Constituição de 1937, essa sim mais identificada com o ideário castilhista (PORTO, 2001, P. 26-29), que defendia a supremacia do Executivo sobre os demais poderes, a “ditadura científica”. E foi a Polaca que introduziu a unicidade sindical e a representação obrigatória, atrelando definitivamente os sindicatos ao Estado, nos arts. 137 e 138:

Art 137 – A legislação do trabalho observará, além de outros, os seguintes preceitos: a) os contratos coletivos de trabalho concluídos pelas associações, legalmente reconhecidas, de empregadores, trabalhadores, artistas e especialistas, serão aplicados a todos os empregados, trabalhadores, artistas e especialistas que elas representam; […]

Art 138 – A associação profissional ou sindical é livre. Somente, porém, o sindicato regularmente reconhecido pelo Estado tem o direito de representação legal dos que participarem da categoria de produção para que foi constituído, e de defender-lhes os direitos perante o Estado e as outras associações profissionais, estipular contratos coletivos de trabalho obrigatórios para todos os seus associados, impor-lhes contribuições e exercer em relação a eles funções delegadas de Poder Público.

Segundo Süssekind, adotou-se a unicidade porque Getúlio temia o fracionamento dos sindicatos com o enfraquecimento das representações, numa época em que a falta de espírito sindical dificultava a formação de organismos sindicais e a filiação de trabalhadores aos mesmos (SILVA & FERREIRA, 2022). E embora Francisco Campos, o Chico Ciência, mentor da Carta de 1937, negasse-lhe o epíteto de fascista (PORTO, 2001, P. 19), e Oliveira Viana – que qualificou de lamentável a situação criada pela Carta de 1934 (NASCIMENTO, 2011) – fizesse o mesmo em relação a leis da época que criminalizaram a greve no serviço público, por exemplo (id. ib.), não há como negar a influência da Carta del Lavoro italiana (MIRANDA, 1990, P. 325), cujo art. III foi reproduzido praticamente ipsis litteris no art. 138:

A organização sindical ou profissional é livre. Mas somente o sindicato legalmente reconhecido e submisso ao controle do estado tem o direito de representar legalmente a categoria dos empregadores ou de trabalhadores para a qual é constituído; de tutelar-lhes, face ao Estado e outras organizações profissionais, os interesses; de estipular contratos coletivos de trabalho obrigatórios para todos os pertencentes da categoria, de impor-lhes contribuições e de exercitar, por conta disto, funções delegadas de interesse público.

Portanto, vê-se que a unicidade sindical começou pela necessidade do Estado tutelar não só a atividade sindical, mas a própria atividade dos trabalhadores, conforme se depreende da fala de Oliveira Viana citada por Pamplona Filho (2022) – um “sofisma”, segundo o autor –, colocando o pluralismo sindical como entrave à representação do interesse coletivo da categoria.

E depois da “porta escancarada”, a unicidade não mais saiu da ordem constitucional brasileira, mantida pelo art. 159 da Constituição de 1946, pelo art. 159 da Constituição de 1967, transformado em 169, com idêntica redação, pela EC nº 1/69[4], todos remetendo ao art. 516 da CLT[5]. E quando houve a oportunidade de mudança, a CRFB atual só a fez cosmética, constitucionalizando no inciso ora em comento o art. 516 da CLT, que não foi alterado pela Lei nº 13.467/2017.

Unicidade: obstáculo ainda não superado

A maioria dos operadores juslaboralistas é contrária à cláusula de unicidade sindical, ainda mais considerando a Convenção nº 187 da OIT. Porém, Bemvenuti (2022), condiciona sua adoção em concomitância com a ratificação da Convenção nº 158 da OIT (Genebra, 2022) (estabelece normas contra a despedida arbitrária), sob o seguinte argumento:

A organização sindical sob a concepção do pluralismo encerra em si a possibilidade de criação de uma nova estrutura sindical, contudo, esta nova estrutura tanto pode ser a mais democrática e participativa possível, como também pode ser a mais totalitária e impositiva possível. E por isso, e até que não se tenha no nosso ambiente sindical, a mínima proteção ao emprego, e a partir de então a possibilidade de construção de uma liberdade individual do trabalhador, a total liberdade coletiva possivelmente acabaria se enveredando pelos caminhos que a liberdade individual foi conduzida até que o Estado viesse a intervir na relação capital-trabalho através do Direito do Trabalho.

[…]. Caso contrário, o que se verificará, necessariamente, será a imposição da vontade pelo mais forte, o que não se coaduna com uma sociedade que se pretende, de fato, democrática e de direito, como é o caso da brasileira, segundo afirmado no caput do artigo 1º de nossa Constituição.

Já Pamplona Filho (2022) defende sua adoção sem quaisquer restrições, dizendo:

Entretanto, apesar de todos estes inconvenientes, cada vez mais me convenço que a pluralidade sindical é como a Democracia: um regime com diversos defeitos, porém, o único aceitável.

Em linha semelhante, Stürmer e Oliveira (2005), advogam que, com liberdade sindical, mais trabalhadores poderão buscar melhores condições de vida, sendo o sindicato um efetivo representante de classe, “sob pena de perecer”, com maiores resultados para a sociedade e diminuição da desigualdade social.

Silva e Ferreira (2022) apontam, ainda, a contradição entre a unicidade sindical prevista na CRFB e o fato de o Brasil ser signatário do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 o qual repete, no art. 8º, as normas da Convenção 87 liberdade sindical. E os autores anotam que

A permanência da unicidade sindical, além de restringir o exercício pleno da liberdade sindical pelos trabalhadores, inclusive, para defesa de seus interesses no trabalho, ainda fragiliza a autodeterminação ou a livre participação dos seres humanos no seu destino, considerando este patente quadro de interferência estatal, o que deixa vulnerável a própria ideia de dignidade humana.

… o artigo 8º, inciso II da CRFB/88 é incompatível com o direito internacional dos direitos humanos dos trabalhadores, merecendo ter sua vigência revista, considerando que o princípio da liberdade sindical reveste-se de maior benefício aos trabalhadores, motivo pelo qual sua inserção ao ordenamento jurídico simbolizaria promoção e proteção da dignidade do trabalhador, e afirmação dos seus direitos humanos trabalhistas.

Portanto, a unicidade sindical é praticamente uma unanimidade negativa entre os juslaboralistas, com maior ou menor grau de oposição ao princípio.

Mas seria possível uma alteração desse dispositivo da CRFB?

Silva & Ferreira (2022), considerando que o princípio estaria protegido nos termos do inc. IV do § 4º do art. 60 da CRFB, por fazer parte de norma de direito fundamental, advogam pela revisão da vigência do inc. II do art. 8º da CRFB e “prevalência das normas internacionais tratativas dos direitos humanos dos trabalhadores”, quando mais benéficas, por incompatibilidade do dispositivo constitucional com “o direito internacional dos direitos humanos dos trabalhadores”.

Stürmer (informação verbal)[6] considera que a modificação deveria ser realizada por emenda constitucional e posterior alteração infraconstitucional e informa que a Academia Brasileira de Direito do Trabalho (ABDT) já apresentou proposta de norma para tanto.

Já Bemvenuti (2022), citando José João Sady, diz que os sindicatos “não querem e nem precisam de liberdade. Eles querem e precisam, sim, é de poder” (grifo no original), por entender que uma liberdade ampla e total, como a preconizada pela Convenção nº 87, num ambiente em que não há “a mínima proteção ao emprego” e “uma liberdade individual do trabalhador”, acabaria por deixar o trabalhador à mercê de quem detém o poder econômico. E nisso embasa sua tese de que a citada Convenção só traria efeitos benéficos ao trabalhador se ratificada em concomitância com a de nº 158.

Tutelando o trabalhador

Com base no até aqui exposto, entende-se que o que ainda acontece em relação à organização sindical nos termos postos no inc. II do art. 8º da CRFB é a pura e simples intenção do Estado de tutelar o trabalhador, como se esse fosse um incapaz.

Embora se possa, da leitura passim dos anais da Constituinte acerca do assunto, ter em mente que houve uma tentativa de alguns dos Constituintes de remover essa restrição, o que permaneceu foi a unicidade, e não apenas por influência política, mas, a teor do que traz Bemvenuti (2022), por ação de muitas entidades sindicais, temerosas de uma possível – e até provável – fragmentação da organização laboral, levando à perda de poder de paridade entre empregados e empregadores e de poder dos dirigentes sindicais.

Concorda-se em parte com a opinião de que, com a liberdade sindical, haveria, de início, uma fragmentação da organização sindical, talvez demorando uma geração, conforme Stürmer (informação pessoal)[7], para ser absorvida e devidamente ajustada pelos trabalhadores. Mas, ao final, eles, como suas “próprias pernas” acabariam por chegar à unidade sindical, por sua própria escolha e com total liberdade e conhecimento. Talvez em menos de uma geração, talvez em mais de uma. Mas seriam os trabalhadores a decidir, não o Estado a impor.

Ainda, após a pesquisa – incluindo os direitos fundamentais –, e considerando o atual panorama da legislação trabalhista brasileira, discorda-se de Silva e Ferreira quanto à proteção do inc. II do art. 8º como cláusula pétrea. A proibição estabelecida no inc. IV do § 4º do art. 60 da CRFB é para evitar alterações que tendam a abolir direitos fundamentais. No caso presente, a eliminação do inciso II não aboliria direito fundamental, somente a unicidade sindical, que, de per se, não é direito fundamental. Ao contrário, como visto até aqui, restringe o direito fundamental de liberdade dos trabalhadores, sendo antinômica com o direito fundamental de liberdade de associação e com a generalidade dos direitos fundamentais garantidos pela Constituição Cidadã.

Assim, a título de colaboração e para fomentar a discussão, sugere-se, mesclando as posições da ABDT e de Bemvenuti – de cujo pessimismo não se compartilha, contudo –, que sejam recepcionadas as Convenções nºs 87 e 158 da OIT conforme o rito do § 3º do art. 5º da CRFB – tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais – como Ato Internacional Equivalente a Emenda Constitucional, à semelhança da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, de 2007.

O Decreto Legislativo que aprovasse a Convenção nº 87, além de recepcioná-la no texto constitucional e estabelecer as possibilidades de alteração, poderia alterar o inc. I e revogar expressamente o inc. II do art. 8º – ou nova redação a este –, sugerindo-se a seguinte nova redação para ambos os incisos:

I – a lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato, ressalvado o registro de sua constituição no competente registro civil, vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical; (NR) (grifamos)

II – os sindicatos de empregados e os de empregadores se organizarão na forma prevista no artigo 2 da Convenção nº 87 da Organização Internacional do Trabalho, bastando para sua constituição o competente registro civil; (NR)

Às próprias entidades sindicais e aos seus filiados será deixada a solução para a questão do alcance das negociações coletivas e representação de não filiados, sem qualquer intervenção estatal, de qualquer dos Poderes. E ao alvitre dos trabalhadores, com suas “próprias pernas”, e não ao Estado, se deixará a avaliação de qual a melhor forma de representar seus interesses.

E, talvez, o Brasil possa alinhar-se aos países de língua portuguesa da África e ao Timor-Leste, que colocaram a liberdade sindical como parte de suas Constituições[8].

Conclusão

Ao final deste trabalho, após passar-se pelas diferenças entre unicidade e unidade sindical, pelo histórico da unicidade nas Constituições, pela posição contrária ao dispositivo dos autores pesquisados, pelo posicionamento a favor da liberdade sindical e da revogação/alteração dos incs. I e II do art. 8º da CRFB, conclui-se que, em linha especialmente com Pamplona e Stürmer, não há liberdade sindical no Brasil – quando muito uma relativa autonomia –, cerceada que é pelo dispositivo constitucional em comento. E vai-se mais longe: não só não há liberdade, como o dispositivo materializa a necessidade do Estado de continuar tutelando os trabalhadores – em todo e qualquer nível – como se esse fora um incapaz, o que não se pode admitir no atual quadro constitucional brasileiro.

Ao final, para fomentar a discussão e agregar argumentos à tese de revogação do inc. II do art. 8º da CRFB, apresenta-se uma sugestão para essa mudança constitucional, a partir da ratificação da Convenção nº 82 da OIT.

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* Jornalista pela FAMECOS/PUCRS; Bel. em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRGS; Especialista em Gestão Pública e Controle Externo pela ESGC Francisco Juruena/TCE-RS; Especialista em Direito Público pelas Faculdades IDC; Mestrando do PPG-DIR/PUCRS; Advogado OAB/RS nº 127.591; Auditor de Controle Externo do TCE/RS (aposentado). hulsendeger@gmail.com.

[1] No sentido de exercer tutela sobre, para obediência, subordinação ou submissão imposta por alguém ou algo mais poderoso (Fundação Houaiss, 2009).

[2] OIT, 1948. Até hoje não ratificada pelo Brasil, como também por EUA, Rússia, China e Índia (STÜRMER, 2018).

[3] Art. 511. É lícita a associação para fins de estudo, defesa e coordenação dos seus interesses econômicos ou profissionais de todos os que, como empregadores, empregados, agentes ou trabalhadores autônomos ou profissionais liberais exerçam, respectivamente, a mesma atividade ou profissão ou atividades ou profissões similares ou conexas.

§ 2º A similitude de condições de vida oriunda da profissão ou trabalho em comum, em situação de emprego na mesma atividade econômica ou em atividades econômicas similares ou conexas, compõe a expressão social elementar compreendida como categoria profissional.

(BRASIL, 2017, p. 85. Grifamos)

[4] Art 159 – É livre a associação profissional ou sindical, sendo reguladas por lei a forma de sua constituição, a sua representação legal nas convenções coletivas de trabalho e o exercício de funções delegadas pelo Poder Público (BALEEIRO & LIMA SOBRINHO, 2001); Art. 156. É livre a associação profissional ou sindical; a sua constituição, a representação legal nas convenções coletivas de trabalho e o exercício de funções delegadas de poder público serão regulados em lei (CAVALCANTI, 2001); Art. 169 – É livre a associação profissional ou sindical; a sua constituição, a representação legal nas convenções coletivas de trabalho e o exercício de funções delegadas de poder público serão regulados em lei (BRASIL, 1999).

[5] Art. 516 – Não será reconhecido mais de um Sindicato representativo da mesma categoria econômica ou profissional, ou profissão liberal, em uma dada base territorial (BRASIL, 2017, p. 86).

[6] Notícia fornecida por Gilberto Stürmer na aula de 13 de junho de 2022 no curso de Mestrado em Direito da PUCRS.

[7] Notícia fornecida por Gilberto Stürmer no curso de Mestrado em Direito da PUCRS, no primeiro semestre de 2022.

[8] Angola, art. 33º; Cabo Verde, arts. 63º a 65º; Guiné-Bissau, art. 45º (1984); Moçambique, art. 86; São Tomé e Príncipe, al. b) do art. 43º; Timor-Leste, art. 52º. (MOURÃO, 2008, p. 59, 385-386, 506, 579, 804 e 875).

César Augusto Hülsendeger é Jornalista pela FAMECOS/PUCRS; Bel. em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRGS; Especialista em Gestão Pública e Controle Externo pela ESGC Francisco Juruena/TCE-RS; Especialista em Direito Público pelas Faculdades IDC; Mestrando do PPG-DIR/PUCRS; Advogado OAB/RS nº 127.591; Auditor de Controle Externo do TCE/RS (aposentado). hulsendeger@gmail.com.

Como citar:

HÜLSENDEGER, César Augusto. Direito Fundamental à Boa Governança: uma resposta da Democracia ao Liberalismo clássico?. Revista Virtual P@rtes. Enviado em …; aceito para publicação em … Disponível em: …

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