Crônicas Margarete Hülsendeger Margarete Hülsendeger

BARBIE E A AMEAÇA DO ESTEREÓTIPO

Nós, mães, ficamos paradas para que nossas filhas possam olhar para trás e ver o quão longe elas chegaram.

Ruth (personagem do filme Barbie)

Margarete Hülsendeger

Pais e mães que não se deram ao trabalho de ler resenhas sobre o filme Barbie devem ter se surpreendido quando levaram suas filhas (e, talvez, algum filho) às salas de cinema. Muitos já devem ter achado estranho a primeira cena, pois ela reproduz, com as devidas adaptações, a abertura icônica do filme 2001: uma odisseia no espaço. No lugar dos macacos, meninas com brinquedos que procuram espelhar as tarefas de uma mãe ou uma dona de casa; no lugar do obelisco desconhecido, os contornos daquela que representaria o ideal do corpo feminino durante décadas: a boneca Barbie.

Se essa cena, no entanto, não foi suficiente para alertar os pais sobre o que viria depois, o restante do filme o faria. Toda a história é construída no sentido de mostrar como os diferentes tipos de Barbie foram pensados para impor, desde cedo, uma imagem que satisfizesse não os desejos das milhares de meninas que um dia brincaram com elas, mas o que muitos homens acreditavam, e ainda acreditam, ser um modelo de mulher. Nesse sentido, a Barbie estereotipada, interpretada por Margot Robbie, apresenta ao espectador, nos primeiros minutos do filme, como deve ser essa mulher: linda, alegre, superficial e, até mesmo, disposta a abrir mão do conforto para parecer sempre na moda. Enfim, uma mulher de mentira, criada para atender às fantasias masculinas.

Apenas quando Barbie percebe não estar pensando ou agindo como estava programada é que ela decide viajar ao mundo real em busca de uma solução para os seus problemas. É nesse ponto que as cenas, sempre em tons de rosa (supostamente a cor “das meninas”), passam por uma transformação acompanhando as mudanças que a própria boneca começa a experimentar. Barbie sofre um choque de realidade quando compreende que, ao contrário do que imaginava, o mundo não é, e nunca foi, das mulheres. Ademais, constata que todas as características que formavam sua personalidade deixaram de ser vistas como um exemplo a ser seguido. Algo que fica claro quando ela encontra o grupo de adolescentes no qual está a menina que um dia brincou com ela.

Nesse ponto, Barbie torna-se vítima do que na psicologia social passou-se a denominar de “ameaça do estereótipo”. Em geral, essa expressão está associada à presença de estereótipos negativos, ou seja, um conjunto de associações e crenças a respeito de uma determinada pessoa ou grupo, a partir de características (físicas, psicológicas ou comportamentais) daquela pessoa ou grupo. No caso da Barbie, temos o a personificação da mulher magra, de cabelos longos e loiros, olhos azuis, saudável, sempre jovem, sem nenhum tipo de doença ou deficiência física, preocupada com futilidades e, nitidamente, heterossexual. Um modelo que força a boneca a agir de forma a corroborar tudo aquilo que se espera dela.

Como resultado, as pessoas que sofrem a “ameaça do estereótipo” vivem uma tensão ativada nos momentos que são colocadas sob uma avaliação de performance ou julgamento de comportamento. No caso de Barbie, isso ocorre não só quando encontra as meninas, mas também quando esbarra com operários da construção ou com um desconhecido na rua. O fato de reunir uma série de traços associados ao que se costumou chamar de “mulher objeto” transforma a experiência de Barbie no mundo real num verdadeiro pesadelo. A saída encontrada pela boneca é voltar ao seu universo cor-de-rosa, mas sabendo um pouco mais do que quando o deixou. Esse novo conhecimento do mundo além da Barbieland permite que a boneca veja com mais clareza o seu entorno, ajudando-a a orientar as suas “irmãs” a compreenderem muitos dos problemas estruturais que passaram a existir em seu mundo não tão cor-de-rosa. Ao se reunir com as outras bonecas, compartilhando não só espaços, mas ideias, Barbie deu o primeiro passo no sentido de reduzir o efeito da ameaça do estereótipo, pois passou a ver-se como parte de um grupo e não como alguém definida por características que a marcaram como diferente.

Barbie é um filme feminista? Se entendemos feminismo como um movimento que procura a igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres, sim, ele é. É um filme contra o patriarcado? Se entendemos patriarcado como um sistema social que atende apenas os homens, a resposta também é sim. De qualquer maneira, na minha opinião, Barbie deve ser visto por meninos e meninas, homens e mulheres, porque independentemente se você é ou não feminista, trata-se de um filme que ajuda a refletir sobre a influência que a cultura exerce sobre nós e de como é quase impossível pensar ou agir fora dela. E, em especial, ele mostra que para mudar a realidade é preciso nos tornarmos conscientes da linguagem que usamos, pois só dessa forma poderemos julgar criticamente as imagens que estruturam a nossa compreensão da sociedade.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

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