Crônicas Margarete Hülsendeger Margarete Hülsendeger

O ENCONTRO DAS ÁGUAS

O ENCONTRO DAS ÁGUAS

Até onde conseguimos discernir, o único propósito da existência humana é acender uma luz na escuridão da mera existência.

Carl Jung

Margarete Hülsendeger

Quando se trata de compreender as religiões de origem africana, com frequência esbarra-se na expressão “sincretismo”. Ao longo do tempo, acostumou-se a defini-lo como sendo a simples correspondência entre os orixás e os santos católicos, justificando-se essa associação à necessidade dos escravizados de esconderem suas crenças para cultuarem seus orixás livres da intransigência do homem branco. Como resultado, enquanto no altar visível homenageava-se Jesus Cristo, Nossa Senhora ou Santa Bárbara, debaixo dele, em um espaço chamado Congá[1], escondido dos olhos autoritários dos senhores de escravos, encontravam-se as oferendas a Oxalá, Iemanjá ou Iansã.

Essa explicação, no entanto, é questionada por muitos estudiosos que a consideram simplista diante da complexidade dos cultos de matriz africana. Diante desse debate, emerge uma dicotomia interessante: enquanto na Umbanda observa-se um esforço para integrar os valores africanos a uma sociedade urbana, por outro, no Candomblé enfatiza-se a necessidade de preservar as tradições africanas. Essa dicotomia reflete-se também nas visões sobre o impacto social das religiões: se alguns consideram a Umbanda capaz de promover grandes mudanças sociais, pois atinge uma camada da população em sua maioria católica e branca, outros defendem que no Candomblé estaria preservada a pureza dos cultos trazidos da África.

De qualquer maneira, independente de discussões sobre a “pureza”, ou não, da Umbanda e do Candomblé, o fato é que o sincretismo foi a forma encontrada para aproximar as entidades do panteão africano da realidade brasileira. No entanto, como já foi dito, ele é muito mais do que uma simples associação entre santos e orixás; ele é, para vários estudiosos, o apoderamento da religião dos orixás dentro de um paradigma que pressupõe a existência de duas orientações antagônicas presentes em todas as atitudes humanas: o bem e o mal, a virtude e o pecado. Uma visão de mundo que não existia na África, mas que foi imposta aos escravizados desde o momento de sua captura.

Por isso, pesquisadores, como Laura Segato, afirmam que o sincretismo já começou na travessia da África para a América. De acordo com ela, foi nesse momento que “cada africano aprendeu, ou foi forçado [a aprender], a se abrir para incorporar o outro dentro do seu horizonte”. Mergulhados na ortodoxia católica, aos escravizados não foi dada uma escolha, foram coagidos a aceitar a “verdade” cristã como sendo a única verdade possível. Uma das consequências dessa coação foi o de preencher o lado do bem com as figuras dos Orixás. Assim, no topo da hierarquia encontraremos Oxalá, o criador da humanidade, posição que já ocupava na África, com o nome de Orixanlá ou Orixá Nlá (Grande Orixá) e que no catolicismo passou a ser representado por Jesus Cristo. O inatingível deus supremo Olorum dos iorubás ajustou-se à concepção do deus Pai judaico-cristão, enquanto os demais orixás ganharam a identidade de santos.

Contudo, ao vestirem a camisa de força de um modelo que pressupõe as virtudes católicas, os Orixás sincretizados perderam muito de seus atributos originais, especialmente aqueles que podiam ferir o campo do bem e da virtude. Essa foi a razão para que muitas das características africanas das Grandes Mães, entre elas Iemanjá e Oxum, fossem atenuadas ou apagadas no culto brasileiro. O objetivo era associá-las à figura da Virgem Maria, retirando delas qualquer traço que pudesse ser considerado pecaminoso.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

Com base no que foi exposto até o momento, pode se dizer que o sincretismo apresenta duas faces que necessitam ser analisadas com rigor para uma compreensão mais profunda do tema. De um lado, há o risco de ocorrer a perda da identidade cultural das tradições religiosas de origem africana; de outro, há quem veja no sincretismo uma forma de facilitar a compreensão e a aceitação de uma religião por pessoas de diferentes culturas. Do mesmo modo, se o sincretismo pode ser usado para legitimar o colonialismo, favorecendo o controle e a assimilação de uma cultura por outra, ele também pode dar origem a novas formas de religiosidade que combinam elementos de diversas tradições.

Observa-se que este é um daqueles temas que geram muita polêmica, suscitando divergências de opinião e estimulando inúmeros debates. Embora o sincretismo tenha contribuído para a sobrevivência de práticas espirituais em um contexto adverso, também gera preocupações sobre a autenticidade e preservação das tradições originais. O desafio, portanto, reside em encontrar um equilíbrio delicado entre a adaptação necessária para a sobrevivência e a preservação da riqueza e originalidade das tradições religiosas afro-brasileiras.

Um Axé para todas e todos!


[1] O Congá (altar) é um elemento central das religiões de matriz africana, como o Candomblé, a Umbanda e o Batuque. É nele que são colocados os assentamentos dos orixás, inquices ou outros seres espirituais, que são reverenciados pelos praticantes dessas religiões.

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