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O negacionismo no cinema

Os bons políticos compreendem o que é possível e tentam consegui-lo por meio de recursos baseados em fatos, enquanto os maus procuram satisfazer o público com fantasias surgidas da imaginação e do pensamento mágico. Robert P. Crease

Netflix/Divulgação

O NEGACIONISMO NO CINEMA

Por Margarete Hülsendeger

No final de 2021, mais exatamente na véspera de Natal, estreou na Netflix brasileira uma produção americana que deu muito o que falar. Suscitou inúmeras discussões e debates, com pessoas se dividindo entre as que odiaram e as que amaram o filme. Nas redes sociais apareceu, inclusive, a seguinte piada: não importa se você gostou ou detestou, o importante é postar um comentário, por mais óbvio que ele possa ser. Muitos a essa altura já adivinharam sobre qual filme estou falando; sim, é esse mesmo, “Não olhe para cima”[1].

Para quem não viu e nem se interessou em acompanhar as discussões nas redes sociais, um breve resumo. Dois astrônomos (um doutor e sua doutoranda)[2] descobrem que em poucos meses um meteorito atingirá a Terra. A partir desse momento, eles tentam de todas as formas alertar a humanidade sobre o perigo que se aproxima. No entanto, ao contrário do que se poderia imaginar, ninguém demonstra muito interesse ou dá a devida importância a esse evento cataclísmico. Como resultado, os dois protagonistas expõem-se ao ridículo, perdem seus empregos e até mesmo suas famílias na tentativa de se fazerem ouvir. O absurdo chega ao ponto da presidente dos Estados Unidos – maravilhosamente interpretada por Maryl Streep – ser convencida, por um magnata misantropo, de que o meteorito não deve ser destruído porque é rico em metais difíceis de serem encontrados na Terra. Cria-se, então, um clima de suspeita sobre a descoberta dos frustrados astrônomos, com a população sendo manipulada para acreditar que os cientistas estavam exagerando nas suas previsões. Entre as diversas situações surreais que são descritas no filme, há a criação, pela cúpula do governo norte-americano, do lema “Não olhe para cima” com o claro objetivo de minimizar a tragédia que está para se abater sobre a humanidade.

O filme aos poucos deixa de ser engraçado e o espectador começa a sentir um certo desconforto que, apesar de ser interrompido por alguma risada nervosa, vai num crescendo até o desfecho quando se constata que um final feliz não faz parte do roteiro. Os críticos dizem tratar-se de uma sátira política, mas o público leigo o vê mais como uma tragicomédia espantosamente atual. Muitos brasileiros, com certeza, identificaram-se com episódios recentes da nossa história, como quando a personagem de Jennifer Lawrence se descontrola diante dos âncoras de uma rede de televisão que pediam que o assunto da iminente extinção da vida no planeta fosse tratado com “leveza”.

O tema central do filme não escapou a ninguém: o negacionismo no qual a sociedade moderna está mergulhada. Mas não um negacionismo simples do tipo “eu tenho minha opinião e você tem a sua”. Não. É algo muito mais complexo porque se tornou, nos últimos anos, um tema extremamente politizado. Uma das razões para isso é o comportamento inconsequente de certos políticos quando percebem que as pesquisas científicas podem impedir, ou pelo menos dificultar, a concretização de seus objetivos. Um exemplo bem conhecido é a questão do aquecimento global.

Alguns “representantes do povo” uniram-se para defender a ideia de que o aquecimento global é uma mentira aplicada por cientistas com intenções ocultas. Outros já dizem que, apesar de não terem formação científica, não precisam ser homens de ciência porque essa é um exercício abstrato com pouca relevância no mundo real. E há ainda aqueles que se apegam ao conceito de que a ciência carrega uma grande incerteza e, portanto, não há uma posição definitiva sobre os modelos utilizados para prever os efeitos do aquecimento global. Em outras palavras, essas pessoas (e não apenas políticos, como também empresários, banqueiros e até gente comum) aproveitam-se de algumas das vulnerabilidades da ciência para impor suas “ideias” (sem qualquer fundamento científico) prejudicando, de forma irremediável, a segurança da população e do planeta.

No filme “Não olhe para cima” essas vulnerabilidades são muito bem exploradas a ponto de a descoberta dos dois astrônomos ficar completamente desacreditada perante a opinião pública. Assim, enquanto o personagem de Di Caprio vende-se para o sistema e ignora os pareceres de seus pares quanto à não viabilidade da missão de resgate do meteorito, a personagem de Lawrence revolta-se e acaba sendo condenada ao silêncio; um silêncio que no final também recairá sobre seu antigo professor. É como diz o filósofo e historiador Robert P. Crease: os ataques contra o negacionismo que não levam em conta a existência das fragilidades da ciência e que insistem na necessidade de se ouvir os especialistas são tão fraudulentos e perigosos como o próprio negacionismo da ciência. Para Crease, em vez de ignorar o que torna a ciência vulnerável é preciso contar a história de como chegamos a essa situação e, em especial, o que se esconde por trás de ações que negam o que há muito tempo está provado e testado.

Como escrevi antes, o tema é mais complicado do que parece, com sutilezas e regiões de sombras que ainda estamos longe de entender. Contudo, esse não é um assunto novo; recordemos Giordano Bruno, Galileu Galilei, Charles Darwin, Louis Pasteur e tantos outros homens e mulheres de ciência que foram ridicularizados, silenciados e até mortos por defender uma visão de mundo diferente. Mas, se quisermos permanecer apenas nas produções cinematográficas, lembremos de um filme chamado “Tubarão”[3].

Cena de Tubarão (1975)
Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

Nesse filme de 1975 vemos o mesmo movimento de “Não olhe para cima”, ou seja, um cientista e algumas pessoas bem intencionadas tentando convencer o prefeito de uma pequena cidade costeira a fechar as suas praias porque os banhistas estavam sendo atacados por uma fera desconhecida. A justificativa utilizada pelo prefeito é a esperada: “Se fecharmos isso vai afetar o faturamento do comércio e deixar a cidade sem recursos”, ou seja, interesses econômicos e políticos sobrepondo-se à segurança e ao bem estar do ser humano. Aliás, a resposta desse prefeito da ficção é muito parecida a do Presidente brasileiro quando, ao ser perguntado, em março de 2020, sobre o Covid respondeu: “Você vai acabar com o comércio do Brasil, que em grande parte é feito na informalidade. Vai ter um caos muito maior do que pode ocasionar esse vírus aqui no Brasil”. Hoje enquanto escrevo este texto o saldo do “vírus aqui no Brasil” é de quase 700 mil mortos. No entanto, apesar das mentiras espalhadas pelas redes sociais e dos discursos negacionistas, a ciência tem provado, de maneira reiterada, que seus métodos são capazes de salvar mais vidas do que um amontoado de discursos mentirosos e irresponsáveis.


[1] Direção de Adam Mckay e produção Adam McKay; Kevin Messick; Scott Stuber; Betsy Koch; Todd Schulman.

[2] Leonardo Di Caprio e Jennifer Lawrence.

[3] Dirigido por Steven Spielberg, com Roy Scheider e Richard Dreyfuss nos papéis principais.

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