Crônicas Margarete Hülsendeger Margarete Hülsendeger

ENTRE O LÍCITO E O ILÍCITO

Por Margarete Hülsendeger

Os aspectos subliminares de tudo o que acontece conosco podem parecer pouco importantes na vida cotidiana… [mas] são as raízes quase invisíveis de nossos pensamentos conscientes.

Carl Jung

Se consultarmos um dicionário observaremos que o adjetivo “subliminar” pode ser definido de diferentes formas. Como simples adjetivo ele significa tudo aquilo que não está explícito, mas que consegue ser entendido pelas entrelinhas. No contexto psicológico, representa o que “não está no âmbito da consciência, embora, por repetição ou por outros procedimentos, consiga alcançar o subconsciente, alterando as emoções, as vontades, as opiniões”[1]. E, na área da comunicação, expressa uma mensagem que se “transmite às escondidas na tentativa de influenciar alguém sem que esta pessoa tenha consciência disso”[2]. As três definições estão de tal forma relacionadas que ao falar de uma poderemos estar nos referindo as outras duas.

Desse modo, no mundo moderno o que não faltam são mensagens sublimares que nos empurram a fazer ou gostar de objetos dos quais não precisamos ou que nos causam algum mal. São muitos os exemplos, mas vou focar em apenas um, o cinema. Você já notou a quantidade de filmes nos quais os personagens aparecem ingerindo bebidas alcóolicas? Acredito que poucas vezes tenha assistido a uma produção cinematográfica na qual isso não ocorra. Contudo, esse não é o maior problema. Na maioria dessas incontáveis produções, o álcool aparece, com uma frequência alarmante, associado a sensações positivas como calma, alegria e até paixão.

Em quantos filmes um personagem chega tenso, nervoso ou irritado e tudo o que precisa fazer para relaxar é beber um gole (ou dois, ou três) de whisky? Em quantas cenas o álcool é o desinibidor ou o calmante escolhido por protagonistas e coadjuvantes, independente de cor, sexo ou idade? E o mais bizarro é que quando se trata da maconha ou da cocaína o comportamento observado é completamente diferente. Ou seja, enquanto o consumo de maconha e cocaína são vícios a serem combatidos, ingerir bebidas alcóolicas é um hábito “quase saudável” porque provoca relaxamento, induz alegria e desperta paixões.

Não pensem que com esse raciocínio estou defendendo a proibição da venda e consumo de vinhos ou de bebidas destiladas. Na verdade, quero apenas sinalizar para uma situação recorrente no nosso dia a dia: enquanto determinados produtos são rotulados como prejudiciais à saúde, outros, com igual capacidade de destruição, acabam sendo, implicitamente, valorizados nas grandes mídias, como o cinema e a televisão. Penso que da mesma forma que houve uma mudança de mentalidade em relação ao fumo, com mensagens explícitas informando sobre o mal que ele pode causar a médio e longo prazo, o mesmo poderia ser feito quando o assunto é o consumo de bebidas alcóolicas. Assim, o mal estar que sentimos ao ver uma pessoa fumando maconha ou cheirando cocaína deveria também ser sentido se víssemos esse mesmo indivíduo ingerindo várias taças de vinho ou uma dúzia de cervejas. No entanto, como bem sabemos, não é isso o que acontece.

O recurso da mensagem subliminar, utilizado pelas empresas de publicidade, tem relação direta com o significado dado pela psicologia ao adjetivo subliminar. A propaganda joga com o nosso subconsciente e inconsciente sabedora que a repetição é a “alma do negócio”. Qualquer publicitário sabe que forças externas à consciência desempenham um papel fundamental nos nossos julgamentos e atitudes. Logo, é repetindo a mesma mensagem incontáveis vezes que são atingidos níveis do inconsciente capazes de reinterpretar a realidade conforme a vontade de quem está no comando dessa programação. Hoje aceita-se, inclusive, que o inconsciente não só interpreta dados sensoriais, como ele os realça.

No caso do cinema (ou da TV), se, filme após filme, um(a) homem/mulher chega em casa, nervoso(a) e irritado(a), e para se acalmar bebe uma dose de whisky, a mensagem, por repetição, que se incrusta no subconsciente é: tensão + álcool = relaxamento. Do mesmo modo, se, cena após cena, amigas/amigos, ao se reunirem para uma comemoração, bebem várias taças de vinho, o que o inconsciente registra é: amizades + álcool = alegria. Pensem: filme após filme, cena após cena. Não há como o resultado ser diferente: para ser uma pessoa feliz e tranquila “só bebendo”. O mesmo não acontece quando o cinema retrata consumidores de maconha, cocaína, heroína ou qualquer outro produto desse tipo. Nesses casos, a imagem que se repete, nas telas grandes e pequenas, é de pessoas física e mentalmente destruídas, muitas delas tornando-se vítimas de uma overdose. Essas drogas, chamadas de ilícitas, não estão associadas a estados de relaxamento ou alegria, mas ao horror da dependência e da morte inevitável. E o álcool? Ele não cria dependência? Não mata?

Para responder a essas perguntas temos os dados divulgados pela Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS)[3]. Segundo a OPAS, o consumo de álcool é um fator causal em mais de 200 doenças e lesões. Além disso, ele está associado ao risco do desenvolvimento de problemas de saúde, tais como distúrbios mentais e comportamentais, incluindo dependência, doenças não transmissíveis graves, como cirrose hepática, alguns tipos de câncer e doenças cardiovasculares. No Brasil, por exemplo, mais de 50% dos acidentes de trânsito envolvem alguém que estava alcoolizado.

Repito: o objetivo não é criminalizar o consumo de bebidas alcoólicas. Defendo apenas uma mudança na forma de encarar o que, atualmente, chamam-se de drogas lícitas, em especial, as bebidas alcóolicas. Alguém, poderá estar pensando: mas após a propaganda de um vinho ou um whisky sempre se ouve uma voz dizendo, “Se beber não dirija. Beba com moderação”. Porém, alguém já viu um rótulo de cerveja com a imagem de um trágico acidente de carro cuja causa foi um motorista embriagado? Ou a imagem do aspecto do fígado de um alcoolista? O que vemos são rótulos com letras estilizadas e frases que garantem a procedência da bebida e, portanto, a sua qualidade. O que me leva a outra pergunta: se nas carteiras de cigarros conseguiu-se incorporar imagens mais realistas sobre os efeitos do fumo a saúde porque não fazer o mesmo com o vinho, o whisky, a vodca e a tão popular cerveja?

Portanto, a questão não é penalizar, mas informar, procurando ver além do que as agências de publicidade e a mídia em geral querem que vejamos. É preciso romper com o feitiço que cobre os nossos olhos e chamar as coisas pelos seus verdadeiros nomes: nicotina, maconha, cocaína, heroína e álcool são drogas, criam dependência e podem matar. Qualquer imagem que não represente isso não está sendo fiel a verdade e, portanto, deve-se desconfiar dela.


[1] https://www.dicio.com.br/subliminar/

[2] https://www.dicio.com.br/subliminar/

[3] Disponível em: https://www.paho.org/pt/topicos/alcool. Acesso em: 14 jun 2022.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

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