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O que é assédio moral?

O que é assédio moral?

Wilson Correia[1]

 

Introdução

 

“Eu não tenho ódio; eu tenho
é memória” (Pedro Nava).

 

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Wilson Correia é doutorando em Educação no PPGE/FAE/UNICAMP e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação PAIDÉIA, na área de História, Filosofia e Educação. Linha de Pesquisa em Ética, Política e Educação, onde desenvolve o projeto de pesquisa Ensino de filosofia: o problema do endereçamento curricular de ética nos PCN. É autor, dentre outros, do livro Saber Ensinar. São Paulo: EPU, 2006.

O tema deste artigo refere-se à conceituação de assédio moral. Objetiva participar do debate e alargar o interesse sobre o tema, além de contribuir para a construção da memória sobre o problema em questão. A metodologia é a da pesquisa conceitual, que busca investigar sob a perspectiva teórico-compreensiva os conceitos que consubstanciam as representações relativas a esse tema.

O fenômeno relativo à “servidão forçada”, com tudo o que ela acarreta de prejuízos ao trabalhador, não é algo novo. Contudo, em nossos dias, dada a facilidade de difundir informações, conhecimentos e saberes, esse assunto ganha maior divulgação, ainda que as pessoas necessitem de aprofundar no entendimento acerca do que ele realmente significa.

Esse foi o caso de uma estudante universitária que, em meio a um debate sobre ética, perguntou-me sobre o que seja assédio moral. O debate foi ampliado e uma turma inteira se interessou pelo assunto, que é multidisciplinar, interessa às diversas áreas de conhecimento e pede o engajamento de todos em seu combate e prevenção.

É pensando nisso que escrevo esse artigo, visando a participar da discussão sobre o que seja o assédio moral.

Trabalho: isso, aquilo e nada disso

A cultura ocidental apresenta três fontes principais: o judaísmo, a filosofia grega e o cristianismo. Como o trabalho é concebido em cada uma delas?

No âmbito do judaísmo temos o livro do Gênesis, mais propriamente o capítulo 3, em seu versículo 19, que apresenta o trabalho como castigo, pois, após a desobediência originária, o gênero humano haveria de comer o pão conquistado com o suor do próprio rosto (GÊNESIS, 3: 19).

A filosofia grega manteve o quanto pôde uma visão negativa sobre o trabalho. Em Platão, as pessoas são de três tipos, conforme tenham alma de ouro, de prata ou de bronze, sendo essas terceiras as que deveriam se dedicar aos trabalhos forçados para produzir a subsistência da cidade. Os de alma de prata fariam a segurança da comunidade e os de alma de ouro seriam os predestinados à conquista da sabedoria, reservada a quem desfruta o privilégio do ócio e não têm de se preocupar com o negócio (PLATÃO, 1987). Já Aristóteles entende que o trabalho, preponderantemente reservado ao escravo, tem na escravidão a sua força principal, uma vez que o escravo é subordinado à ordem dos instrumentos da ação, inserido no ordenamento natural das coisas (ARISTÓTELES, 2002). Por esses motivos, Platão valoriza a alma, em prejuízo de tudo o que o corpo é e pode produzir e Aristóteles circunscreve a escravidão no âmbito das leis naturais.

Por fim, o cristianismo católico, à medida que prega o desprendimento deste mundo terreno em vista de uma vida bem-aventurada no céu, termina por colocar em desvantagem as ações produtivas, desvalorizando o trabalho. Nessa perspectiva, “Não há evidências, nesse período, de que existisse exaltação do trabalho. Não merecendo uma preocupação especial na estrutura social e econômica daquela época, ele absorvia apenas uma pequena parcela da atenção da classe dominante” (CARMO, 1992, p. 22). Temos assim, até o final da Idade Média, uma visão predominantemente desfavorável ao ato de trabalhar, identificado com sofrimento, com as visões filosóficas ou religiosas dando sustentação a essa concepção.

No início da Idade Moderna essa visão sobre o trabalho como sinônimo de sofrimento vai se alterando, predominantemente após a Revolução Religiosa alemã, já em sintonia com a classe burguesa, a qual fará, ainda, a Revolução Econômica (Revolução Industrial na Inglaterra), a Revolução Política (Revolução Francesa) e a Revolução Epistemológica (Revolução Copernicana consagrada durante o Iluminismo, na Alemanha).

A Revolução Religiosa foi empreendida por Martinho Lutero, no século XVI, o qual difundiu a ideia de que o trabalho e a produção material concorrem para o merecimento das bênçãos e graças divinas, razão pela qual imprime um sentido positivo ao trabalho. Segundo Lutero, o trabalho reforça a fé.

Essa perspectiva foi estudada por Max Weber em seu livro A ética protestante e o espírito do capitalismo (WEBER, 2003). Segundo esse novo norteamento, a riqueza produzida pelo trabalho não é condenada por Deus, mas, ao contrário, evidencia a existência dos eleitos (daí o termo elite) ou predestinados ao êxito material como os merecedores das graças e da salvação dadas por Deus. Nesse contexto, o ócio é condenado, juntamente com as tentações da carne e o desperdício de tempo.

Com o capitalismo consolidado, trabalhar, mas, sobretudo, valer-se da riqueza produzida por meio do trabalho executado por outrem, passa a ser uma verdadeira obsessão. Aí, o trabalho é seguidamente identificado com a ideia de progresso, o qual, empreendido pelos seres humanos racionais, autônomos e emancipados, haveria de conduzir a humanidade à paz perpétua e à felicidade universal. Na linha desse pensamento, afirma o Prêmio Nobel de Economia de 1973, Leontief:

“Antes de sua expulsão do Paraíso, Adão e Eva desfrutavam, sem trabalhar, um nível de vida elevado. Depois de sua expulsão, tiveram de viver miseravelmente, trabalhando de manhã até a noite. A história do progresso técnico dos dois últimos séculos [XVIII-XIX, XIX-XX] é a de um esforço tenaz para voltar a encontrar o caminho do Paraíso” (LEONTIEF apud CARMO, 1992, p. 36).

No entanto, em lugar do Paraíso, o que também os séculos XVIII, XIX e XX, tanto quanto os dias atuais, mostram é o homem e a mulher exercendo a exploração e a espoliação sobre outro homem e outra mulher (MARX & ENGELS, 1988).

Assim, o trabalho não é só negatividade, nem tão-só um bem, mas tanto pode humanizar como humilhar. É nesse contexto de expropriação do trabalho alheio, de pobreza e miséria para multidões e de riqueza para as elites, que se situa o problema do assédio moral.

Trabalho no capitalismo: o competitivismo predatório e assédio moral

Sabemos que os valores basilares do capitalismo compreendem o lucro, a acumulação, o consumismo e a competitividade acirrada em todas as esferas da vida pessoal, profissional e social. Guiados por esses valores, os proprietários dos meios de produção almejam sempre mais a obtenção de lucros, pois ele é a alma da acumulação. Os proprietários da força produtiva, os trabalhadores, lutam cada vez mais por melhores salários, que são a condição de possibilidade de inserção no mundo do consumo (CANIATO, 2000).

Em uma palavra, o espírito de competitivismo predatório toma conta de todos. Ninguém escapa dessa verdadeira luta de todos contra todos, possibilitando, entre outras coisas, a existência do assédio moral. Mas, o que é assédio moral?

Segundo o Sítio Assédio Moral no Trabalho,

“… exposição dos trabalhadores e trabalhadoras a situações humilhantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções, sendo mais comuns em relações hierárquicas autoritárias e assimétricas, em que predominam condutas negativas, relações desumanas e aéticas de longa duração, de um ou mais chefes dirigida a um ou mais subordinado(s), desestabilizando a relação da vitima com o ambiente de trabalho e a organização, forçando-o a desistir do emprego.”

Nesse contexto, as condições de trabalho vão sendo degradadas e o trabalhador percebe-se deslocado, alquebrado, desmotivado, inútil e isolado com relação ao grupo de que faz parte no ambiente profissional. Tudo isso gera no trabalhador o sentimento de estar passando por humilhação e o entendimento de estar sendo

“… ofendido/a, menosprezado/a, rebaixado/a, inferiorizado/a, submetido/a, vexado/a, constrangido/a e ultrajado/a pelo outro/a. É sentir-se um ninguém, sem valor, inútil. Magoado/a, revoltado/a, perturbado/a, mortificado/a, traído/a, envergonhado/a, indignado/a e com raiva. A humilhação causa dor, tristeza e sofrimento” (SÍTIO ASSÉDIO MORAL NO TRABALHO, 2006. s./p.).

Nessas condições, não há integridade física, mental, social e espiritual que resista às mazelas que uma tal experiência acarreta para quem se vê na condição de vítima do assédio moral.

Conclusão

Se não vivêssemos sob o sistema capitalista selvagem, que a tudo explora para transformar todas as coisas em mercadorias, as quais, vendidas, possibilitam o lucro e a acumulação, e se esse sistema não fosse alimentado pelo consumismo e pela competitividade predatória, talvez tivéssemos melhores condições de trabalho. Em melhores condições de trabalho, talvez pudéssemos prevenir com mais eficácia as ocorrências de assédio moral.

Isso, contudo, é apenas a expressão de um desejo. Sabemos que um modo de produção material da vida que prime pelo respeito à dignidade humana haveria de lastrear-se na cooperação, na solidariedade, na partilha e na satisfação de necessidades humanas reais. Esses valores não se realizariam sem uma noção mais realista de nossas diferenças e igualdades, ritmos e capacidades, habilidades e aptidões. Daí o fato de um modelo de produção material da vida assim entendido constituir-se em um verdadeiro desafio para todos nós.

Enquanto o enfrentamento desse desafio não é empreendido no sentido da superação das atuais condições de trabalho, a função de todos quantos deparam com as ocorrências de assédio moral, até por uma questão de ética profissional, é fazer o possível para minorar e banir seus prejuízos. Calar-se, em casos dessa natureza, redunda em omissão. Omitir-se pode ser uma forma de ficar indiferente a esse fenômeno. Indiferença, quer queiramos, ou não, é a forma mais insensível de se estar morto de pé, sem a intensidade da vida, o nosso legítimo patrimônio.

Referências bibliográficas

ARISTÓTELES. A Política. Trad. T. Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2002.

GÊNESIS. In: BÍBLIA. Português. A bíblia sagrada. Tradução João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969.

MARX, K. & ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis: Vozes, 1988.

CANIATO, A. M. P. Da violência no ethos cultural autoritário da contemporaneidade e do sofrimento psicossocial. Psi Revista de Psicologia Social e Institucional. Londrina. N. 2, v. 2, dez. 2000, p. 197-215.

CARMO, P. S. do. A ideologia do trabalho. São Paulo: Moderna, 1992.

PLATÃO. A República. Lisboa: FCG, 1987.

SÍTIO ASSÉDIO MORAL NO TRABALHO. http://www.assediomoral.org/site/assedi o/AMconceito.php. Acesso em: 10.05.2006.

WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Livraria Pioneira Editora. 2003.

[1] Wilson Correia é doutorando em Educação no PPGE/FAE/UNICAMP e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação PAIDÉIA, na área de História, Filosofia e Educação. Linha de Pesquisa em Ética, Política e Educação, onde desenvolve o projeto de pesquisa Ensino de filosofia: o problema do endereçamento curricular de ética nos PCN. É autor, dentre outros, do livro Saber Ensinar. São Paulo: EPU, 2006.

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