Crônicas Johnny Notariano

Edelweiss

Johnny Notariano
publicado originalmente como www.partes.com.br/cronicas/edelweiss.asp

Os medos da noite desapareciam ao se ouvir o som da \Banda Musical\ da cidade em serenata às quatro horas da madrugada. Era normal em todas as datas

João Luiz Notariano \Johnny\
Universidade de São Paulo
E-mail: notarian@usp.br

festivas ou não, homenagear o município, os moradores e os visitantes com aquela apresentação pelas ruas estreitas. Alvoradas memoráveis.

Os fantasmas da noite e da imaginação eram expulsos quando na mesma hora as funcionárias de uma tecelagem próxima à minha casa aguardavam a entrada para o trabalho. Em seguida as máquinas começavam a funcionar. As vozes entusiasmadas das trabalhadoras, o som dos teares e toda aquela dinâmica da madrugada, permanecem vivas em minha imaginação.

Criança ainda, dez anos de idade, duas vezes por semana eu acordava às quatro horas da manhã para ajudar e conhecer o trabalho na Redação de um dos jornais da cidade. Sem me preocupar com os perigos da noite que não existiam, a não ser pelas narrativas de alguns que tentavam nos amedrontar com casos do sobrenatural, eu me dirigia muito feliz e tranquilo pela penumbra das ruas até a Redação.

Essa era a minha rotina. Ao deixar a Redação eu me dirigia à Igreja Matriz para ajudar na Celebração da Missa matinal, em seguida corria para casa, um café rápido e chegava a tempo na Escola.

Assim foi minha infância e continuada na adolescência.

Ainda de \calças curtas\, Colegial pela manhã; educação física ao amanhecer; Curso noturno em Escola Técnica de Contabilidade e tempo para assistir aulas de desenho técnico no Liceu de Artes e Ofício da cidade.

Não havia espaço para pensar no que não fosse sadio e planejava-se os afazeres com inteligência. Assim era com todos os jovens naquela época. Tudo com alegria, prazer, objetivo e valorizar cada momento vivido era normal.

Alguns fatos pitorescos marcaram aquelas madrugadas. No caminho para a redação eu encontrava alguns veículos que entregavam e vendiam pães. Quando era mês de festejos juninos, eles me davam alguns fogos do tipo \Traques ou as conhecidas bombinhas\ depois me orientavam onde estourá-las. Não confundam com \CRAK\, essa expressão na minha época era sinônimo de vencedores que se destacavam por aquilo que tinham de melhor. Crak do futebol; Crak nos estudos; Crak da Medicina; Crak do Direito; Crak no amor, entre outros vencedores, eram todos sadios.

Hoje rio ao pensar na minha ingenuidade ao estourar os fogos nas ruas. Os padeiros com isso acordavam as pessoas, vendiam o produto e aproveitavam para cobrar os \fiados, devedores de longo prazo\, mas quitavam a dívida.

Deixavam os pães nas janelas, ninguém tocava, mas tinha alguém na cidade, que escolhia uma residência com vários pães na janela e levava um para casa. Ao levar só um, ela garantia pão fresco todos os dias. Para quem se lembra, era o famoso \pão filão\. A coincidência, que os \fiados\ era por conta dessas entregas cujas contas nunca conferiam. O morador acreditava em entrega equivocada, a menos. Eu não era \dedo duro\, um dia pegaram o ladino, mas a benevolência era tão grande, o senso de caridade sempre presente em todos, fez com que os padeiros o presenteasse diariamente com um pão para sua família.

As noites eram calmas, madrugada serena, sem qualquer atropelo, mas como precaução existia a segurança da cidade. A responsabilidade maior ficava a cargo da \Gloriosa Força Pública\, hoje Polícia Militar; \Tiro de Guerra (Exército) e uma Guarda Noturna composta por dois vigilantes. Enquanto um dormia o outro descansava. Não havia ocorrências.

No curso fundamental, na época conhecido por \Curso Primário\, as atividades eram muitas. Ensinava-se tudo o que era necessário para uma vida feliz e o currículo era rico em cultura. Lembro-me da inauguração de um \Jornalzinho escolar\ que me surpreendeu e me emocionou com um texto de minha autoria em primeira página.

A educação detinha um nível de excelência brilhante. O curso ginasial exigia exame de admissão para ingresso, em junho, outro exame avaliava a continuidade do aluno na série que estava matriculado. Esses exames equivalem hoje aos \famosos vestibulares\. Não tinha e não havia necessidade de \cursinhos\, o aluno da rede pública era preparado para ingressar em qualquer faculdade.

A chegada do horário de recreio era esperada com ansiedade para se trocar ideias, lanches e participar de brincadeiras sadias.

Não tinha policiamento nas portas das escolas.

O tempo passou, não enveredei pelos caminhos da literatura ou jornalismo, mas com dez anos de idade um escritor e jornalista convidou-me para escrever alguns pequenos textos em um dos jornais da cidade, publicaram e me causou orgulho ao vê-los publicados.

O curso fundamental me trás grandes recordações pela eficiência e dedicação dos professores, reconhecidos mestres em preparar os alunos para o futuro. Lembro-me ainda com carinho de todos eles. Será que os jovens de hoje se lembrarão de seus professores? Será que terão o que comentar sobre a vida escolar?

Era tudo diferente. Respeito a vida; gentilezas; educação; saúde; dedicação exclusiva por parte dos educadores; responsabilidade política; ética e moral caminhavam juntas, contudo, não precisava investir tanto em segurança, não havia necessidade.

Parece que estamos vivendo o Apocalipse; tempos difíceis, mas é preciso resgatar a identidade perdida, essa parte boa e saudável da vida, romper com o pernicioso, jogar fora tudo o que não presta e apenas investir no conhecimento, nada mais. Só a Educação, só conhecimento, será capaz de alicerçar com bases sólidas o futuro de nossos jovens. Do contrário, seremos condenados a continuar com a ausência de pessoas preparadas para tudo e conviver com uma sociedade podre cuja utilidade única é propagar o sofrimento entre as pessoas.

Por tudo isso, eu aprendi a gostar da madrugada, valorizar cada momento vivido e entendi por que o fim de noite inspirou tantos artistas e poetas das artes, musical, letras e plásticas a reverenciar toda essa beleza. Descobri o firmamento; o luar e os encantos da Estrela da Manhã, fonte inspiradora de canções inesquecíveis. O aroma que exalava nas alvoradas de cada final de noite, faz-me sentir até hoje nas entranhas como a um perfume nunca antes inalado.

Hoje assimilo uma época bem diferente e distante daquela que conheci, vivi e acredito no desejo geral das famílias em querer procurar no passado um motivo de fuga desesperada. Não são apenas reminiscências, são lembranças vivas acompanhadas de muita saudade, alegrias que se foram sonhos transformados em pesadelos, esperanças perdidas e frustrações. Ainda sou uma criança adulta.

Por que essa mudança radical na vida das famílias?

Tenho por hábito acordar na madrugada e numa dessas fui até a uma panificadora próxima buscar alguns pães.

Meu Deus! Que horror. Valores invertidos. Quanta tristeza.

Vi muitos jovens, até crianças indo e vindo como parte da rotina diária. Foi fácil distinguir os que caminhavam para um objetivo e foi mais fácil ainda ver aqueles que voltavam para lugar nenhum. Pareciam perdidos em um mundo irreal como robôs enfileirados se abismando em profundezas sem fim. Em cada olhar, desespero; tristeza; angústia; desesperança; desamor e no íntimo, o grito de \ajuda-me\.

Quanta amargura nos lares; quantas lágrimas derramadas; quantos caminhos truncados; quantos sonhos obstruídos e desfeitos, quanta tristeza nos corações.

Egoísmo; individualismo; omissão; duras penas às vítimas do descaso, da ganância, de um poder corrompido e condenados ao sofrimento. Uma sociedade carente das coisas mais importantes e simples para se viver em harmonia e paz. Quantos jovens já se foram na curta vida que lhe foi dada. Quantos ainda serão as próximas vítimas? Em poucos anos o que será de nossos jovens? Que futuro teremos? Quantos velhos hoje com vinte ou trinta anos de idade não querem mais viver? Alguém tem alguma dúvida de como será nossos futuros \Jovens Velhos\? Teremos futuro?

Esses jovens vivem e creem na falsa alegria que lhes são impostas; no falso poder que demonstram; cantam; riem; dançam; patrocinam espetáculos em público; alguns violentos, outros não conseguem mais raciocinar; mansos, perdem as forças e inabilitados para tudo, procuram a passagem perdida de volta. Um grande prêmio para os que encontram, terão a oportunidade de apreciar os encantos e o esplendor da vida e das madrugadas sadiamente.

Na cavalgada noturna perdem a noção de família e aqueles que têm onde encostar, aonde chegar, levam um pouco do inferno consigo e transforma a vida daqueles que os amam e os acolhem em aflições terríveis. Convivência insuportável esgota-se todos os recursos de ajuda e obriga as famílias a tomarem decisões cruéis que deixam sequelas, feridas dolorosas difíceis de cicatrizar.

A busca dos familiares é intensa e constante na resolução desses problemas. Questionam DEUS pela demora em mostrar a solução que a cada dia se agrava mais. Viemos de uma geração cujo credo Cristão nos ensinou a não perder a fé, a esperança e orar até pelos responsáveis por essa excrescência social, exercitar a paciência e entender o livre arbítrio e o poder salvífico como proposta de se encontrar a saída e o céu.

Será que não chegará o dia que essa angústia tenha fim e a paz, o amor, voltem a reinar nas famílias? – DEUS, OUÇA NOSSAS PRECES!

Foi em uma dessas madrugadas, ao voltar com os pães, que entendi os Desígnios de Deus, são inquestionáveis. Coloquei uma música suave em baixo volume, orquestrada e que agrada a todos pela maravilhosa harmonia de seus acordes. EDELWEISS, que em Alemão significa alguma coisa muito preciosa, branco; nobre. É uma flor delicada, aveludada, bonita que nasce nas alturas dos Alpes Europeus. Surgiram lendas sobre jovens que para provar o amor a alguém, arriscavam suas vidas na dificuldade de colhê-las.

Como Edelweiss, o que existe de mais nobre, mais precioso para um pai; mãe e uma família? É a própria família e preservar os filhos é o mesmo que colher nos Alpes a flor como prova de amor familiar.

No quarto, um menino ainda, sobressaltado, mergulhado em sonhos ou pesadelo, aos prantos e soluços clamava para que DEUS o levasse e terminasse com seu sofrimento. Ao mesmo tempo, orei para que DEUS abrandasse aquele sofrimento causado pela ação maligna da irresponsabilidade humana. Não é justo, um menino cheio de vida pela frente; muitos projetos, terminar dessa maneira. É difícil aceitar essa ação desumana que o coloca nossos jovens no abismo da desesperança.

O que está acontecendo não é humano. Enxuguei as lágrimas e ao som da música Edelweiss implorei a DEUS uma ação regeneradora, urgente e naquele momento, como resposta, ouvi uma voz rouca muito triste, que disse:

          – PAI, ENSINA-ME A SORRIR OUTRA VEZ.

Dedico a todos aqueles que sofrem por essa maldita causa .
Johnny Notariano
notarian@usp.br

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