Crônicas Margarete Hülsendeger

A rainha e a roleta russa

A RAINHA E A ROLETA RUSSA

Margarete Hülsendeger

Sabemos tantas cosas, que la aritmética es falsa, que uno más uno no siempre son uno sino dos o ninguno, nos sobra tiempo para hojear el álbum de agujeros, de ventanas cerradas, de cartas sin voz y sin perfume.[1]

Julio Cortázar

Margarete Hülsendeger é Física e Mestre em Educação em Ciências e Matemática/PUCRS. É mestra e doutoranda em Teoria Literária na PUC-RS

O País das Maravilhas não é uma democracia. Ao contrário. É uma monarquia absolutista onde quem manda é uma mulher com um temperamento muito difícil. A monarca em questão chama-se Rainha de Copas.

Apesar de só aparecer no final da história, ela é mencionada várias vezes, pois todos as personagens a temem. Quando, finalmente, ela surge percebe-se que havia razão em ter medo dela, pois trata-se de uma mulher autoritária, irascível, com mania de perfeição e que por qualquer motivo condena seus súditos à decapitação. Sua frase mais frequente é “cortem a sua cabeça!”. No entanto, aparentemente as decapitações nunca ocorrem, pois ou o Rei de Copas revoga as sentenças ou os próprios soldados se negam a obedecer. De qualquer maneira, o fato é que, apesar das não-mortes, todos temem a Rainha de Copas.

Já o “jogo” chamado “roleta russa” é algo bem diferente. Nesse caso, a possibilidade da morte é bem real e a única possibilidade de fugir dela é deixando de participar do “jogo”. Acredito que muitos já ouviram falar no que seria a “roleta russa”, mas aqui vai uma breve explicação para os que não sabem do que estou falando.

Para “jogar roleta russa” você precisa apenas de um revólver (armas automáticas não servem), uma bala e no mínimo outro jogador. É claro que se o grupo for maior a “diversão” também o será. Depois, basta sentar em torno de uma mesa, por uma bala no tambor, girá-lo, encostar o cano da arma na cabeça e puxar o gatilho. Se só um clique for ouvido passa-se a arma para o próximo jogador, até que em algum momento em vez do clique, se ouvirá um BANG! E nesse momento o “jogo” estará encerrado.

A diferença entre as sentenças neurastênicas da Rainha de Copas e a roleta russa são evidentes. Na segunda sempre haverá alguém com a cabeça destroçada.

Agora, e se esse mesmo “jogo” fosse aplicado aos fenômenos quânticos?

Nesse caso, também precisaríamos de uma arma, mas seu disparo seria controlado por uma propriedade quântica chamada spin. Essa propriedade só pode assumir dois estados que, para fins de explicação, chamaremos de “vivo” ou “morto”.

Pela física tradicional, a chance de “sobrevivência” ao acionar o gatilho é de 50%, mas quanto mais se “jogar”, menos provável será que você sobreviva. Exatamente o que ocorre se for usado um revólver e uma bala comuns. Assim, antes do primeiro disparo você tem exatamente 50% de possibilidades de permanecer vivo ou de morrer imediatamente. Conforme o jogo se prolonga, as chances de vida diminuem e as da morte aumentam.

Contudo, existe uma teoria que acredita que é possível igualar essas chances, assim o jogador poderá permanecer vivo, não importa quanto tempo o jogo dure. Essa teoria é chamada de “multiverso”.

Essa situação, aparentemente bizarra, ocorre porque os defensores do “multiverso” acreditam na existência de diferentes universos semelhantes ao nosso. Logo, mesmo quando o gatilho é puxado, em algum universo (ou em vários) “você” poderá ouvir apenas o clique, já que a arma vai falhar todas as vezes. Em outras palavras, “você” vai perceber que é imortal!

É claro que existe um problema (e quando não há?): esse “você” imortal não é o “você” que está lendo este texto, mas um outro vivendo em algum universo paralelo onde a roleta russa também está sendo jogada. “Então, isso significa que minhas chances de morrer permanecem altas se decidir jogar?”. Minha resposta imediata (e responsável) é um claro e sonoro “sim”!

A teoria do multiverso é, como o próprio nome diz, uma teoria; portanto, um conjunto de hipóteses e ideias que ainda não foram comprovadas. Além disso, é preciso lembrar que estamos falando de fenômenos que ocorrem no universo atômico, domínio do muito, muito pequeno. Por enquanto, o único universo com o qual conseguimos interagir é o nosso, e nesse a roleta russa continua sendo um “jogo” perigoso e, na minha opinião, completamente absurdo.

A Rainha de Copas, com sua “mania” de mandar decapitar por qualquer motivo, é tão real quanto a ideia dos multiversos. Ambos são resultado da criação da mente humana. De qualquer maneira, é bom saber que, mesmo fazendo alguma bobagem (como “jogar” roleta russa), temos a chance (mesmo que teórica) de sairmos incólumes, sentindo-nos imortais. Afinal, como diz o Grifo (outro personagem do País das Maravilhas), tudo é apenas fantasia. Mas, repito: cuidado! Neste universo – o “nosso” universo – “brincar” de roleta russa continua sendo um “jogo” mortal. Portanto, não se arrisque. E se não tiver coisa melhor para fazer, leia “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carol, e mergulhe em uma fantasia que lhe trará prazer e nenhuma dor.

 

[1] Sabemos tantas coisas, que a aritmética é falsa, que um mais um nem sempre é um, podendo ser dois ou nenhum, sobra-nos tempo para folhear um álbum feito de buracos, de janelas fechadas, de cartas sem voz e sem perfume (tradução livre).

 

HÜLSENDEGER, Margarete Jesusa Varela Centeno . A RAINHA E A ROLETA RUSSA. REVISTA VIRTUAL PARTES, SÃO PAULO, 11 maio 2015.

 

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