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A História Vista de Baixo: a cultura popular tradicional por Edward P. Thompson

THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. Tradução Rosaura Eichemberg. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

“A HISTÓRIA VISTA DE BAIXO”: A CULTURA POPULAR TRADICIONAL POR EDWARD P. THOMPSON[*]

Anatália Daiane de Oliveira[†]

Eva Emília Freire do Nascimento Azevedo[‡]

Edson Caetano[§]

 

O presente texto tem como objetivo descrever e refletir sobre alguns aspectos do livro “Costumes em comum” de Edward Palmer Thompson, evidenciando suas contribuições para o debate da “história vista de baixo”, ou seja, por meio de um movimento crítico, com vistas a entender como as camadas populares se movimentam e fazem história, dando visibilidade e protagonismo às pessoas que por longo tempo tiveram suas vivências excluídas e marginalizadas pela historiografia “oficial”.

Thompson nasceu em Oxford, em 03 de fevereiro de 1924. Na sua juventude viveu momentos decisivos na sua trajetória: a adesão ao Partido Comunista Britânico e a interrupção dos seus estudos universitários para participar da Segunda Guerra Mundial.

A seção da qual fazia parte no Partido Comunista Britânico, acabou sendo um dos principais núcleos de elaboração do marxismo na Inglaterra. De acordo com Fortes, Negro e Fontes (2012, p. 31, destaque no original) “a necessidade de uma compreensão histórica do desenvolvimento do capitalismo inglês numa perspectiva marxista tornou-se, assim, o elemento aglutinante das energias intelectuais […]” de alguns jovens historiadores, entre eles, Thompson.

Ainda conforme os autores, de todas as influências de sua vida – entre elas a de ser professor com o intuito de “criar revolucionários” –, surge em Thompson, o interesse de reconstruir historicamente o processo de desenvolvimento do capitalismo, a partir de uma perspectiva marxista, e as lutas que contribuíram para as conquistas materiais e culturais do povo inglês.

Além de debater sobre o movimento operário, “[…] Thompson trata em suas obras acerca dos crimes, protestos (individuais e coletivos), e o caráter tradicional e ativo da cultura popular, [que] concorreram decisivamente para inspirar e dar forma e conteúdo a um modo diverso de se pensar, pesquisar, analisar e redigir a história, vista a partir ‘de baixo’”. (FORTES; NEGRO; FONTES, 2012, p. 23, destaque no original).

Dentre as suas obras estão “A miséria da teoria”, “A formação da classe operária inglesa” (seu livro mais famoso), “As peculiaridades do Ingleses e outros artigos” e “Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional” – esta última é a que tentaremos lançar um olhar perscrutador.

“Costumes em comum” traz artigos escritos em diferentes momentos por Thompson, que busca defender a tese de que no século XVIII eram particularmente fortes a consciência e os usos costumeiros. O primeiro capítulo com o título “Introdução: costume e cultura”, traz uma breve discussão e conceituação sobre esses dois termos e relata que as camadas populares resistiam teimosamente diante das “[…] pressões para ‘reformar’ sua cultura segundo normas vindas de cima […]” (THOMPSON, 1998, p. 13, destaque no original).

No segundo capítulo “Patrícios e plebeus”, Thompson descreve e analisa a relação entre a gentry – “fidalgos” – e a plebe – “trabalhadores pobres”. Embora houvesse um controle, uma hegemonia cultural e um poder econômico e físico da gentry sob a plebe, ela possuía obrigações – em grande parte manifestada por meio do paternalismo e do “teatro” – que eram enraizadas nos costumes da plebe. No caso de abandono dessas obrigações, a resposta poderia vir por meio de três diferentes maneiras: a tradição anônima, o contrateatro e a ação direta rápida e fugaz.

Entre essas maneiras, destacamos a tradição anônima, que podia se caracterizar pela ameaça ou carta anônima, tiro ou tijolo pela janela, deferência simulada, árvores do pomar derrubadas, incêndio criminoso da lenha ou da casinha, portão fora dos gonzos, comportas do lago dos peixes abertas à noite etc. Segundo Thompson (1998, p. 64) “O mesmo homem faz uma reverência ao fidalgo de dia ––e que entra na história como exemplo de deferência –– pode à noite matar as suas ovelhas, roubar os seus faisões ou envenenar os seus cães.”

Apesar das manifestações da plebe não definirem a existência de uma consciência e à clareza de objetivos, havia manifestação da presença política, o que possibilitava a negociação diante de situações que estavam em desconformidade com os costumes e a cultura plebeia.

O terceiro capítulo “Costume, lei e direito comum” relata sobre a importância dos costumes e sua precedência sobre a legislação britânica. Quando, por exemplo, com o desenvolvimento agrícola iniciou-se a prática dos cercamentos, “[…] sujeitos ‘impertinentes’ e ‘despeitados’ obstruíam os cercamentos por acordo, resistindo até o fim em favor da antiga economia baseada nos costumes” (THOMPSON, 1998, p. 95). E por isso, os costumes podiam ser vistos como “um lugar de conflito de classes”.

Nos capítulos quarto “A economia moral da multidão inglesa do século XVIII” e quinto “Economia moral revisitada”, o autor relata sobre a resistência das camadas populares à elevação dos preços, à retenção da produção, às exportações para o estrangeiro, às mudanças nas medidas, à compra antecipada etc. em relação ao trigo. Relata ainda como o pão – derivado do trigo – era um dos principais alimentos dos “pobres” naquela região e época.

A resistência podia ser manifestada de diferentes formas, entre elas: estradas bloqueadas, carroças interceptadas e descarregadas, navios assaltados no porto, pequenos tumultos diante das padarias, fixação do preço do pão, queima de moinhos, ataque aos moinhos e aos celeiros, vaias em frente às lojas de varejo, simples reunião de uma multidão ameaçadora etc. O autor relata ainda que, em diversas dessas práticas, o interesse estava em punir os proprietários e não roubá-los, por isso, diversas vezes os cereais ou a farinha eram espalhados ao longo das estradas e das sebes, despejados no rio, as máquinas do moinho eram danificadas, suas represas escoadas, ou ainda as cargas eram repartidas entre a própria população e esta deixava ali o valor considerado justo por ela.

No sexto capítulo “Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial”, Thompson faz uma análise sobre as mudanças na compreensão do tempo e reflete sobre como isso afetou a disciplina de trabalho e a percepção interna de tempo dos trabalhadores. Ele apresenta como se dava a medição do tempo entre os povos primitivos, até seu uso e controle por meio dos relógios (públicos, de pêndulos, de pulso, com ponteiros de minutos) e por fim, a relação tempo e dinheiro.

Thompson observa que, à medida em que vão se alterando as relações de trabalho, estabelece-se a relação entre empregador-empregado, a contratação de mão de obra e o tempo começa a se transformar em dinheiro – dinheiro do empregador, que passa a exercer um controle cada vez maior sobre os trabalhadores. Ele observa ainda a disciplinarização do trabalho, a partir das figuras do supervisor e do diretor de fábrica, que tinham “[…] ordens para manter uma folha de controle do tempo de cada diarista, com registros anotados com precisão de minutos, informando a ‘entrada’ e ‘saída’” (THOMPSON, 1998, p. 290, destaques no original).

O tempo passa então a ser condutor não apenas do trabalho, mas também das rotinas e relações sociais dos indivíduos. Apreciar uma mesa de chá, por exemplo, seria uma prática devoradora de tempo e dinheiro. Já a necessidade de acordar cedo para o trabalho, forçaria o trabalhador a dormir cedo, assim, evitar-se-iam as folias noturnas, além de ser um hábito que “[…] introduziria uma regularidade rigorosa nas famílias, uma ordem maravilhosa na sua economia” (THOMPSON, 1998, p. 292).

No sétimo capítulo “A venda de esposas”, Thompson menciona que coletou cerca de 300 casos de venda de esposas na Inglaterra, e se debruçou sobre 218 dentre eles, os quais ocorreram entre 1760 e 1880 e vieram de todas as regiões da Inglaterra, um caso da Escócia e alguns poucos do País de Gales.

O autor relata que a venda das esposas era altamente ritualizada: “a) a venda devia ocorrer numa praça de mercado reconhecida ou outro local semelhante de comércio” (p. 315); “b) A venda era às vezes precedida por um anúncio público ou reclame” (p. 316); “c) A corda era essencial para o ritual. A mulher era levada ao mercado presa por uma corda, em geral amarrada ao redor do pescoço, às vezes ao redor da cintura” (p. 316); “d) No mercado, alguém devia fazer as vezes de leiloeiro, e devia haver pelo menos a aparência de um leilão público” (p. 318); “e) O ritual exigia a troca de algum dinheiro”; e “f) O momento real da entrega da corda era às vezes solenizado pela troca de juramentos análogos aos de uma cerimônia de casamento” (p. 320).

Segundo Thompson (1998), a venda de esposas foi considerada por muitas pessoas da época – particularmente as da classe dominante – como uma prática bárbara, atentado à decência, escândalo público, totalmente ofensiva à moralidade e altamente imoral e ilegal e, por isso, deveria ser repudiada e denunciada. Foi vista pela classe dominante ainda como prova da ignorância e dos sentimentos brutais de parte da população rural, já que era significada como compra direta de um bem, em que a mulher era leiloada como um animal ou mercadoria, além de que tinha uma tendência de menosprezar o santo sacramento do matrimônio.

Entretanto, o autor defende que essa prática foi uma tradição inventada pelas camadas populares como forma de uma transferência legal e legítima e que, geralmente, materializava o divórcio seguido de um novo casamento com consentimento da esposa, já que naquela época o divórcio era um privilégio dos detentores do capital (THOMPSON, 2012).

Além disso, para o autor, a venda de esposas era um mecanismo social de ajuste. Geralmente o ritual que acontecia era uma ficção, uma vez que a compra já havia sido combinada e em alguns casos o comprador era o amante da mulher. Entretanto, o esposo se comportava “[…] com uma generosidade mais humana que a encontrada nos atuais processos de separação” (THOMPSON, 2012, p. 237). Neste sentido, na nossa sociedade que é dita “civilizada”, é bem comum o marido ao se descobrir traído pela esposa matá-la juntamente com seu amante. Nessa época relatada pelo autor, considerada “atrasada”, a sociedade criou um mecanismo de ajuste, que ela também legitimou por meio do costume.

No oitavo e último capítulo, o autor relata sobre o “rough music”, que era um termo utilizado desde o fim do século XVIII na Inglaterra “[…] para denotar uma cacofonia rude, com ou sem ritual mais elaborado, empregada em geral para dirigir zombarias ou hostilidades contra indivíduos que desrespeitam certas normas da comunidade” (THOMPSON, 1998, p. 353).

O “rough music” podia ser caracterizado de diversas formas – barulho estridente e ensurdecedor, mímicas obscenas, barulho de pedras, latas de água e pás, bater potes e panelas, máscaras e danças, desfile de uma vítima (ou um substituto) montada em uma vara ou num burro, desfile e queima de efígies, sátiras em versos, cartas ou papéis anônimos afixados nas portas das igrejas etc. – e tinha como alvos diferentes pessoas – recém-casados, mulher em desacordo com os valores da sociedade patriarcal (ranzinza, que batia no marido etc.), o marido “chifrado”, o casal que vivia brigando, marido que batia na mulher etc.

Entretanto, “[…] a rough music também podia ser empregada numa direção completamente diferente, ‘para demonstrar desaprovação em relação à decisão de um magistrado’, ou a um processo rigoroso ou severo” (THOMPSON, 1998, p. 387, destaques no original). Além disto, para o autor, essa manifestação cultural também “indica modos de autocontrole social e o disciplinamento de certo tipos de violência e ofensas antissociais (insultos às mulheres, abuso infantil, espancamento das esposas) que nas cidades de hoje pode estar diminuindo” (p. 396-397).

Debruçar sobre “Costumes em comum” é encarar uma historiografia empenhada em registrar e refletir sobre a história de mulheres e homens que foram invisibilizados, silenciados e excluídos. A população retratada por Thompson não se acostumava, nem se acomodava, ao contrário, se posicionava diante das injustiças e desigualdades que viviam naquela época e reivindicava as condições básicas para sua própria sobrevivência, a exemplo das manifestações contra o aumento dos produtos que eram base da sua alimentação e que ocasionava a fome – tida como “normal” na contemporaneidade.

Percebemos que, conhecer essa e outras obras de Thompson vai para além de uma viagem a um passado “não nosso” e remoto: é percorrer uma trajetória não conhecida, oficialmente silenciada e proibida; é compreender a história a partir de um compromisso acadêmico e político com as classes “naturalmente” tidas como subalternas e, especialmente, com a vida real de homens e mulheres – que de forma peculiar contribuíram não só para manutenção de suas próprias existências, mas que influenciaram toda uma nação.

 

Referências

FORTES, Alexandre; NEGRO, Antonio Luigi; FONTES, Paulo. Peculiaridades de E. P. Thompson. In: THOMPSON, Edward Palmer. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Organização Antonio Luigi Negro e Sergio Silva. 2 ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012. p. 21- 58.

THOMPSON, Edward Palmer. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Organização Antonio Luigi Negro e Sergio Silva. 2 ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012.

 

Como publicar na Revista Virtual:

OLIVEIRA, Anatália Daiane de; AZEVEDO, Eva Emília Freire do Nascimento; CAETANO, Edson. “A história vista por baixo”: a cultura popular tradicional por Edward P. Thompson. Revista P@rtes, jul. 2016.

 


[*] Resenha apresentada à disciplina Teorias e práticas em Pesquisa na Educação I junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), ministrada pela professora Dra. Michèle Sato e pelo professor Dr. Luiz Augusto Passos. O presente estudo conta com o apoio da bolsa de demanda social da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por meio do Edital Universal (2014-2017).

[†] Doutoranda em Educação pela UFMT. Pedagoga e mestra em Psicologia pela Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Pesquisadora do Grupo Amazônico de Estudos e Pesquisas em Psicologia e Educação (GAEPPE) e do Grupo de Pesquisa de Educação na Amazônia (GPEA). Participante do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Educação (GEPTE). E-mail: anataliadaiane@hotmail.com

[‡] Doutoranda em Educação pela UFMT. Assistente Social e mestra em Serviço Social pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professora do Departamento de Serviço Social da UFMT. Participante do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Educação (GEPTE). E-mail: evemilia@yahoo.com.br

[§] Graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP). Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e professor do Instituto de Educação (IE) da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), campus Cuiabá. Líder do GEPTE. E-mail: caetanoedson@hotmail.com

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