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O último Réveillon


Pedro Coimbra
ppadua@navinet.com.br
                A turminha se assentava na porta da loja do Tião Bonitinho e a Candinha era conhecida por dar notícias, falsas ou verdadeiras, de tudo o que acontecia na cidade. Opinavam sobre as mulheres mais bonitas, os maridos enganados, os mais cidadãos mais espertalhões, os políticos corruptos, quem estava quebrado ou ia quebrar, os que se encontravam na tábua da beirada, prestes a desencarnar… Falavam a língua do pê, ou chamada dos alfaiates, que era uma forma de se comunicar de uma maneira que  outras pessoas não entendiam o que se falava na frente delas. Parecia difícil, pois acrescentavam no final de cada sílaba da palavra, uma sílaba formada com a letra “P” mais o fim da sílaba original. O segredo era falar bem rápido. Olhavam bem nos olhos das meninas moças que passavam e diziam: p-eu-p-a-p-mo-p-vo-p-cê. Elas não entendiam, mas sabiam ser um elogio.
            Muitas pessoas davam a volta, passando pelo passeio do velho prédio da Prefeitura para evitar os fofoqueiros de plantão. Menos Xhosa, um africano respeitado pelos rapazes e que chegara na cidade fazia muito tempo, vindo sabe–se lá de onde. Estudara Contabilidade e era considerado o melhor guarda-livros da cidade. Com seu corpanzil gostava de jogar de futebol e era considerado um becão. Seu casamento com Mara, filha de um professor de Português, causou muita polêmica na cidade, porque ela loura, tinha uma pele muito alva, mais branca do que um copo de leite. Tiveram três filhas e Marcinho foi o primeiro da Candinha a notar que o africano andava não olhando para o chão cheio de buracos das calçadas, mas para o infinito, muito além do Sol. Ou ficava, no seu descanso, na sacada de sua casa a tocar de forma exímia e sensível seu saxafone.
            No Ano Novo de 1974, uma terça-feira, participou de um jogo de futebol na Comunidade dos Ratos, banhou-se por longo tempo como era seu hábito e participou ao lado das filhas e da mulher, de uma linda ceia. Deitaram-se alta madrugada e Mara ainda ouviu as últimas notas do seu sax. Quando acordaram no dia seguinte, Xhosa desaparecera, no que parecia ter sido seu último Réveillon. A mulher se desesperou e o delegado Altair, foi seco e grosso quando conversou com o sogro, dizendo que aquele era um caso que nunca seria resolvido. “Seu” Alípio, gerente do banco avisou que Xhosa deixara uma conta corrente em nome da mulher e das filhas, com uma pequena fortuna. Não deram falta de roupas e nem de objetos pessoais. A única coisa que não foi encontrado em sua residência foi o seu instrumento musical. Mara chorou muito e nunca mais foi a mesma, sempre a esperar seu amado. Mesmo que fosse motivada por um simples boato de que ele teria sido visto em alguma localidade distante.
            No Réveillon de 2000, num sábado, sem mais nem menos, Xhosa desceu na rodoviária da cidadezinha e com mesmo hábito de olhar para o infinito, dirigiu-se para sua casa onde as filhas com os namorados participavam de uma ceia. Chegou tocando no seu saxafone “As times goes by” e numa cena emocionante abraçou-se a mulher Mara e as filhas. E depois abraçou o Papai Noel gigante colocado perto da Árvore de Natal. No meio da comoção ninguém lhe perguntou onde se enfiara por estes longos anos. Apenas Mara notou que o seu Xhosa não envelhecera nada e parecia até mais jovem.
            Depois dos brindes e desejos de um Feliz Ano Novo, de muita comilança, foi para seu antigo escritório de contabilidade e começou a escrever um livro que só foi encontrado por sua família anos depois. Na mais correta língua do pê, ou dos alfaiates, ele descrevia sua vida desde que nascera na África do Sul e sua vinda para o Brasil. Estranhamente não tocava no assunto dos anos em que desaparecera da cidadezinha. Falava isso sim de mundos estranhos no Cosmo infinito de Deus que conhecera depois do seu último Réveillon… Para Silveirinha, repórter de um pasquim chamado “O Clarim”, que olhava as pessoas debaixo de suas grossas lentes de míope, era tudo mentira. Xhosa faria parte de uma gangue sul-africana que fazia tráfico de crianças como descobrira em suas investigações. Para a família ele deixara uma mensagem para sempre na sua língua natal:  Geseende Kerfees en ‘n gelukkige nuwe jaar e que somente a Chacrinha entendeu como Feliz Ano Novo...

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