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O trânsito a transformou, ou teria sido a vida?

Significado das placas de transito
 
Mara Rovida* 

Mara Rovida é jornalista, doutoranda no PPGCOM da ECA-USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo
Mara Rovida é jornalista, doutoranda no PPGCOM da ECA-USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo

Sempre foi muito tímida. A menor possibilidade de exposição pública – mesmo que isso se resumisse a um pequeno grupo – fazia seu coração disparar, as mãos começavam a suar e o rosto ganhava um ardor avermelhado. Apesar disso, ela seguia adiante.
Beleza nunca foi seu forte e só aos trinta começaram a dizer que ela tinha seus encantos. Não sei se levou a sério alguma vez, mas certamente ficou envaidecida com um ou outro elogio. Era calma na maior parte do tempo, embora fosse fácil tira-la do sério.
No início de sua experiência como motorista, ficava receosa, com medo de cometer erros e ser julgada, xingada ou coisa do tipo. Talvez por vaidade, talvez pela timidez que conduzia seus batimentos cardíacos a uma velocidade impensável, talvez pelas duas coisas; o fato é que não queria errar a marcha e nem a arrancada na presença de ninguém. Era como uma pequena aprendiz que se esforça por mostrar bom desempenho. Mas, o trânsito pode ser impiedoso.
Sua calma e gentileza – sempre dava passagem, ajudava os demais a mudar de faixa e respeitava os motociclistas – eram vistas como se incompetência e tacanhez fossem. Logo percebeu que era atacada toda vez que punha em prática uma ação de delicadeza com um pedestre ou outro motorista qualquer. Isso a irritava.
Começou a se sentir oprimida por uma forma de dirigir que a ela se impunha. Não teve jeito, passou a agir como os demais. Não aceitava fechadas e não era condescendente com quem queria cortar a fila ou não sinalizava quando pretendia mudar de faixa. Xingava, perseguia quem a desrespeitava e discutia, com os vidros fechados, claro.
Se estivesse apressada, costurava pelas avenidas, buzinava, dava sinal de luz e tudo mais que podia ser feito. Não tinha paciência com quem vacilava para entrar numa rua ou parecia não saber ao certo para onde ir. De repente, passou a oprimir quem não tinha a mesma postura dura e decidida que ela adotou. Como numa reverberação impensada e irracional, a moça tímida se transformava numa brigona que partia para o embate ao menor sinal de desrespeito, ou o que julgava assim ser. Seu coração ainda pulsava forte e parecia querer escapar do peito, mas agora não mais pela timidez.
A raiva, o incômodo com o outro só a deixavam quando ela saía da posição de motorista. Ao descer do carro, ela voltava a corar, as mãos continuavam suando e ela seguia achando que não era bonita, mas se esforçava para ser, pelo menos, competente no trabalho. Como pedestre, ela podia sonhar, mesmo que fosse julgada por isso, afinal muitos acham desprezível essa mania que algumas pessoas têm de, pela imaginação, se transportar para outro mundo, para uma vida alternativa. Apesar de tanta pressão externa para se enquadrar, como pedestre, ela ainda não tinha se rendido, seguia com seus doces devaneios e suas memórias inventadas.
 
* Mara Rovida é jornalista, doutoranda no PPGCOM da ECA-USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo.

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