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Essa é uma história de amor

ESSA É UMA HISTÓRIA DE AMOR

Margarete Hülsendeger

 

No amor, tudo é ao mesmo tempo falso e verdadeiro; o amor é o único assunto a respeito do qual é impossível dizer algo absurdo.

Julian Barnes

 

O nome dele é Paul e o dela é Susan. Para Paul, Susan foi o seu primeiro amor. Para Susan, Paul talvez tenha sido o segundo ou o terceiro, mas prefiro pensar que também foi o seu primeiro grande amor. Os dois, como sempre acontece nas histórias de amor, tiveram de superar alguns obstáculos para ficarem juntos. Enquanto Susan era casada, com duas filhas e tinha 48 anos, Paul era um rapaz solteiro de 19 anos, cursando a universidade. Os dois se apaixonaram e por algum tempo mantiveram sua relação em segredo, mas, como o amor vence todas as barreiras e dificuldades acabaram fugindo e viveram felizes para sempre.

Se você acreditou no breve resumo do parágrafo anterior é porque não conhece o escritor inglês Julian Barnes. Em 2011 ele venceu o prestigioso prêmio Booker Prize, com o livro O sentido do fim, que conta a história de uma amizade e de como podemos nos enganar quando não estamos dispostos a ouvir o que outro tem a nos dizer. Agora, em 2018, ele lança um novo livro chamado A única história[1], cujos protagonistas são um jovem de 19 anos e uma mulher de 48 que se apaixonam quando se encontram em clube de tênis para jogar uma partida de duplas. Portanto, não o enganei quando disse que os personagens principais se chamavam Susan e Paul, assim como não inventei suas idades e estados civis. Tudo isso está no livro, mas é apenas a superfície, uma espécie de isca que Barnes costuma jogar para seus leitores para mais tarde, ao mudar o capítulo, desconstruir toda a história e com isso surpreender o leitor.

O modus operandi de Barnes é bastante simples. Primeiro ele lança a isca (o parágrafo que abre este texto pode servir como exemplo); depois, retoma a história e vai mostrando o que costumamos chamar de o “outro lado da moeda”, momento no qual você percebe que nem tudo é como foi contado, existindo todo um contexto que foi “subtraído” do leitor; o terceiro e último passo é, na falta de palavra melhor, o “acabamento”, ou seja, quando o autor costura, de forma minuciosa, os pontos que ficaram soltos. Talvez, agora, você esteja pensando: se Barnes segue essa “fórmula” todas as suas histórias são previsíveis e, portanto, o leitor já sabe que alguma coisa vai acontecer. Sim, é verdade, o leitor de Barnes sabe que “algo” está prestes acontecer, mas ele é tão bom na construção de suas narrativas que, mesmo sabendo, sempre mordemos a isca para depois sermos fisgados pelo seu anzol. Quando lemos seus livros é como quando assistimos um filme que nos marcou: sabemos como termina, mas estamos dispostos a seguir até o fim com a esperança que dessa vez o resultado seja diferente. Obviamente, ele nunca é.

A única história é um livro médio em extensão: tem menos de 300 e mais de 200 páginas (na verdade, 224). Contudo, sua leitura pode ser feita em um dia se você dispor de tempo, pois Barnes não é daqueles autores pedantes que gosta de esbanjar erudição para confundir e, muitas vezes, zombar de seus leitores. Sua linguagem é simples, direta e envolvente; é como se ele estivesse ao seu lado, contando a história enquanto observa a sua reação. Mas, não se engane, uma linguagem “simples” não significa uma narrativa pobre; nada poderia estar mais longe da escrita de Julian Barnes. Na verdade, essa “simplicidade” é uma das “armadilhas” do autor, a isca que mencionei anteriormente, porque quando tudo vira de ponta cabeça, ficamos tão abalados que temos dificuldade de identificar a origem do golpe que recebemos. No caso de A única história, tudo está, de alguma forma, associado à necessidade de compreender o drama, a dor e a confusão que os seres humanos podem enfrentar quando o assunto é um sentimento tão poderoso como o amor. Por isso, logo no início, o narrador pergunta: “Quem pode controlar o quanto ama?”, e ele mesmo responde, “Se você consegue controlar, é porque não é amor. Eu não sei que nome dar a isso, mas não é amor”.

No primeiro capítulo do livro, o foco de Barnes é nos apresentar Paul e Susan e a sua decisão de superar os preconceitos impostos pela sociedade para ficarem juntos. Para fazer isso, o autor descreve as convenções sociais que orientavam o comportamento das pessoas que viviam em uma área suburbana de Londres, nos anos 60, chamada Village. Homens e mulheres de classe média cujas vidas já estavam determinadas desde o nascimento, uma mesmice que foi interrompida quando Susan e Paul iniciam sua relação. O casal enfrenta todas as dificuldades, desde a separação de Susan do marido até o afastamento de Paul de sua família. O leitor é envolvido de tal forma que aceita tudo sem questionar, sendo constantemente conduzido pela memória do narrador. Mas quando o capítulo termina, logo percebemos que muito ficou por ser dito já que o narrador, que é um Paul bem mais velho, diz: “E é assim que eu me lembraria de tudo, se pudesse. Mas não posso”. E nesse ponto percebemos que engolimos a isca.

Começam a surgir os pequenos detalhes que, no início, lembram aquelas situações que acontecem com todo o novo casal em fase de adaptação, como perceber que dormir abraçadinhos não é tão confortável ou prazeroso como se pensava. Aos poucos, no entanto, os segredos começam a emergir, segredos que têm o poder, não só de transformar sentimentos, mas de matar a inocência. No segundo capítulo tudo vem à tona. É como se uma onda gigantesca se levantasse e varresse tudo à sua volta, sem qualquer tipo de misericórdia ou controle. O leitor é arrastado para uma outra história, cheia de surpresas, sustos e revelações. Barnes traz a violência doméstica e o alcoolismo para a narrativa, temas que colocarão à prova o amor de Paul e Susan. As definições de “sexo bom”, “sexo ruim” e “sexo triste” foi uma das coisas mais tristes que eu li nos últimos tempos, tão triste que chegou a doer: “Sexo triste é quando você sente que está perdendo o contato com ela, e ela com você, mas esta é uma maneira de um dizer ao outro que a conexão ainda está lá, em algum lugar, que nenhum dos dois está desistindo do outro, mesmo que uma parte de você tema que sim”.

Margarete Hülsendeger é Física e Mestre em Educação em Ciências e Matemática/PUCRS. É mestra e doutoranda em Teoria Literária na PUC-RS. margacenteno@gmail.com

O terceiro, e último, capítulo é, como disse antes, a costura dos pedaços que ainda ficaram soltos. Paul já é um idoso, aposentado, que percorre sua memória – uma memória que tem como limites o aS e o dS (antes e depois de Susan) –, fazendo um balanço de sua vida e, consequentemente, de suas ações (e não ações), refletindo não só na forma como elas o afetaram, mas também como afetaram as pessoas (principalmente mulheres) com as quais ele conviveu. Paul reconhece, por exemplo, o quanto a memória pode ser traiçoeira e tendenciosa, oscilando entre o otimismo e o pessimismo. Assim, se a memória é otimista “poderia tornar mais fácil alguém se despedir da vida, poderia suavizar a dor da extinção”, mas se ela é pessimista, “tudo parece mais sombrio e triste do que realmente foi, então isto pode tornar mais fácil deixar a vida para trás”. Paul passa, ao longo do livro, por uma transformação, deixa de ser o jovem ingênuo e inocente, para se tornar um homem prático e solitário cujo único propósito é lembrar “corretamente” de Susan.

A única história é uma história de amor ao estilo Julian Barnes, sem romantismo ou sentimentalismo. A ausência desses “ismos”, contudo, não a torna melhor ou pior em relação a outras histórias de amor, ela é apenas única, como são todas essas histórias. Paul e Susan poderiam chamar-se Rita e Mauro ou Jorge e Márcia, e suas histórias continuariam sendo únicas. Por isso, para encerrar este texto escolho uma frase que, na minha opinião, define muito bem a essência da história narrada por Barnes: “Talvez o amor não pudesse ser nunca capturado em uma definição; ele só podia ser capturado em uma história”. Leia A única história e deixe-se levar por essa história única de amor!

[1] BARNES, Julian. A única história de amor. Tradição Léa Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2008 (Edição Kindle).

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