democracia Educação Educação Gestão Educacional

Política educacional dos anos 90: embates acerca da gestão democrática no campo político e social brasileiro

POLÍTICA EDUCACIONAL DOS ANOS 90: EMBATES ACERCA DA GESTÃO DEMOCRÁTICA NO CAMPO POLÍTICO E SOCIAL BRASILEIRO

 

Vilma Aparecida de Souza[*]

Resumo:

Vilma Aparecida de Souza – Professora do Curso de Pedagogia da Faculdade de Ciências Integradas do Pontal, da Universidade Federal de Uberlândia. E-mail:vilmasouzza@yahoo.com.br

O presente artigo tem como objetivo verificar os reflexos da concepção hegemônica de democracia no Brasil na esfera educacional, considerando as políticas educacionais brasileiras da década de 1990. Procurar-se-á identificar as aproximações da política educacional, a partir da década de 1990, com a concepção hegemônica de democracia, sustentada pelo neoliberalismo e pela lógica do capital, como parte de um cenário de redefinição do papel do Estado em função do atual momento de reestruturação do modo de produção capitalista.

Palavras-chaves: Democracia; Política educacional; Gestão democrática

Abstract:

This article aims to verify the reflexions of the hegemonic conception of democracy in Brazil in the educational sphere, considering the Brazilian educational policies of the 1990s. It will be tried to identify the approaches of educational policy, from the 1990s, with The hegemonic conception of democracy, supported by neoliberalism and the logic of capital, as part of a scenario of redefinition of the role of the State in function of the current moment of restructuring the capitalist mode of production.

Keywords: Democracy; Educational politics; Democratic management

 

O tipo de formação social que caracterizou historicamente a sociedade brasileira produziu um contexto político e social hierarquizado, homogeneizado por um segmento minoritário que se consolidou como elite dirigente. Segundo Azevedo (2001, p. 144)

Grosso modo, podemos considerar que, desde os primórdios da colonização portuguesa até o século XX, cujo marco referencial é a Revolução de 1930, o poder emanou da elite agrária. Neste período, foram mantidos subjugados milhões de trabalhadores escravos. Na última fase, na chamada República Velha (1889/1930), apesar da abolição da escravatura ocorrida no final do Império, o poder político foi distribuído entre os grandes proprietários de terras, que instituíram o chamado poder local. Através do mandonismo, do coronelismo, submeteram à exploração e à ignorância a maioria da população (AZEVEDO, 2001, p. 144).

O processo descrito acima evidencia o monopólio do poder e da riqueza que, por meio de processos de dominação política, acarretou um constante mecanismo de exclusão social. Esse modelo de organização política deixou como legado uma sociedade marcada pelo autoritarismo, verticalismo e exclusão, consequência de um processo de relações clientelísticas que prevalecem num cenário guiado pelos interesses privados das elites.

Azevedo (2001, p. 144), aponta que a partir da década de 1930, apesar da urbanização e modernização aceleradas que imprimiram um novo perfil à sociedade brasileira, tal processo “não alterou a estrutura básica da pirâmide social” (AZEVEDO, 2001, p. 144). Embora os processos de modernização e urbanização tenham incorporado uma parcela significativa da população ao mercado de trabalho e ampliado o acesso à educação, cultura e saúde, os mesmos não alteraram de forma estrutural o modelo de sociedade hierarquizada e excludente. Tais mudanças foram implementadas na sociedade somente no nível da “dimensão fenomênica, isto é, reestruturá-la sem transformar os pilares essenciais do modo de produção capitalista” (ANTUNES, 2002, p. 36).

Nos denominados “períodos democráticos” após a ditadura, Azevedo (2001, p. 144) aponta que as elites consolidaram-se no poder por meio da representação formal legitimadas nos processos eleitorais.

As alterações que se processaram no campo político com as eleições diretas deram um novo fôlego ao discurso em torno das possibilidades de participação dos vários segmentos da sociedade no processo político. A conquista do sufrágio universal apresentava-se como sinônimo de avanço, de meta final. Todavia, a prática evidenciou que a participação política extrapola o ato eleitoral.

Para Colares, “não bastava eleger, era preciso acompanhar, fiscalizar, participar” (COLARES, 2003, p. 92). A democracia não se reduz a um simples método de governo por meio de eleições. Numa dimensão mais ampla, a democracia consiste num estado de participação efetiva. Acompanhando as análises de Colares, a democratização supera os limites da representatividade por meio da eleição direta, avançando para princípios que garantam um acompanhamento das ações dos dirigentes por parte de toda a população, pelo viés da participação consciente.

A gestão democrática aparece como uma via capaz de suplantar as limitações do simples ato eletivo, um novo prisma para se vislumbrar as questões políticas.

O processo de “abertura política”, ao final dos anos 1980, propiciou possibilidades de participação de vários setores na formulação de propostas para as esferas da sociedade, dentre elas, a educação.

No que se refere à educação, apesar de todos os obstáculos, lutas e embates, a mobilização para a gestão democrática da escola pública garantiu que a Constituição Federal, promulgada em 1988, incorporasse em seu texto a democratização da sociedade e da escola pública. Embora de forma vaga e imprecisa, o artigo 206 estabelece como princípio para o ensino a “gestão democrática do ensino público, na forma da lei”. (BRASIL, 1988).

Acompanhando a Carta Magna, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9394/96) também adota o princípio da gestão democrática no que diz respeito à educação nacional. De acordo com a LDB nº 9394/96, art.14, os sistemas de ensino definirão as normas de gestão democrática do ensino público na educação básica a partir dos princípios:

I-participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola;

II-participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes (BRASIL, 1996).

Apesar do respaldo legal, efetivar o processo de implementação da gestão democrática tem sido um grande desafio em meio às incertezas de uma tradição política de governo, calcada no autoritarismo e na centralização das decisões. Além desse aspecto, vale ressaltar que o contexto econômico e político atual, segundo a concepção de Estado e de acordo com seus aspectos ideológicos neoliberais, entendem que o controle sobre diversos setores sociais garante a implementação de suas políticas. Segundo Azevedo (2001, p. 144),

[…] assegurar o sistema de privilégios e a exclusão da maioria foram, portanto, tarefas historicamente exercidas pelas ações autoritárias de um Estado privativo das elites. Isto gerou uma cultura autoritária que impregnou as instituições e o conjunto das relações em nossa sociedade, o que é absolutamente incompatível com o exercício da democracia e da cidadania (AZEVEDO, 2001, p. 144).

Para tanto, faz-se necessário o uso de diversos aparelhos ideológicos com forma de convencimento ideológico que são, na verdade, a imposição autoritária como forma de exercer poder sobre a comunidade.

Percebe-se, por outro lado, que a legitimação da força ocorre por meio do discurso explicitado nas leis promulgadas desde 1990, que por sua vez referendam a prática da gestão democrática.

Porém, do discurso à prática há um longo caminho, principalmente, quando o próprio Estado entende que exercer a função de regulação dos serviços sociais é manter o controle (aqui entendido no contexto da centralização de decisões), que na verdade é a busca da classe dominante manter-se no poder.

Ao analisar o perfil historicamente consolidado da sociedade brasileira, apesar das diferentes fases históricas, verifica-se que o autoritarismo, o verticalismo, a exclusão, as relações clientelísticas com a sociedade, a hegemonia dos interesses privados no seu interior e a sua apropriação pelas elites foram características centrais do Estado brasileiro. Azevedo (2001) identifica alguns modelos assumidos pelo Estado brasileiro em sua trajetória, que carregaram em seus cernes as características desse perfil:

[…] o Estado oligárquico controlado pelas elites agrárias; o Estado intervencionista, que mesclou aspectos keynesianos e fascistas, representado pelo período varguista (1930/1945); o Estado liberal-populista (1946/1964); o Estado militarista e autoritário (1964/1985) e o Estado neoliberal, cujas políticas estão em pleno desenvolvimento (AZEVEDO, 2001, p. 144-145).

Diante desse caráter autoritário e privado do Estado brasileiro, parece paradoxal falar em democratização do Estado e gestão democrática do ensino público. Então, por que será que muitas políticas públicas e políticas educacionais trazem impressas em seus textos palavras como “democracia”, “gestão democrática”, “participação” e “autonomia” e “exercício da cidadania”? Como foi discutido no primeiro capítulo, apresenta-se como contraditório a conjugação deste caráter autoritário e privado do Estado brasileiro, acirrado ainda mais pelo atual processo de reestruturação neoliberal – que concebe o conceito de “mercado” como o motor da organização social e um mecanismo autorregulador do processo econômico capaz de corrigir os desequilíbrios do capitalismo – e a realização plena de um regime democrático. Bóron (1999, p. 33) destaca a incompatibilidade entre o processo de exclusão social que caracteriza o neoliberalismo com o pleno funcionamento de um regime democrático.

Frente a uma sociedade marcada pelas mazelas do neoliberalismo, que deixam como herança profundas desigualdades e uma devastadora exclusão social, responsável pelo aumento do desemprego e da pobreza, torna-se evidente o paradoxo entre a dinâmica do capitalismo e o desenvolvimento das instituições democráticas.  Um outro ponto apontado por Bóron esclarece que

[…] a sede da democracia continuará sendo o Estado-nação. Mas, qual é o drama de nossa época? É que os Estados, especialmente na periferia capitalista, foram conscientemente enfraquecidos, quando não selvagemente sangrados, pelas políticas neoliberais a fim de favorecer o predomínio sem contrapesos dos interesses das grandes empresas (BÓRON, 1999, p. 49).

Tal análise encontra ressonância com Sader (1999) que evidencia que as reformas do Estado são implementadas como um pacote de ajustes fiscais na contramão da construção da democracia,

[…] atualmente, o enfraquecimento dos Estados nacionais se faz não em proveito da democracia mundial, mas em proveito dos monopólios que controlam o mercado mundial oligopolizado, através de sua manipulação do mercado e de uma espécie de governo mundial que opera através do Banco Mundial, do FMI, do G-7,  da OMC (SADER, 1999, p. 129).

Nesse contexto, os interesses do capital são amplamente defendidos desde por uma rede de organismos multilaterais, até por governos de países que adotaram os ditames do neoliberalismo, em oposição aos interesses dos setores populares. Assim, mais uma vez, levanta-se a seguinte questão: “… é possível que uma sociedade deste tipo avance na extensão e profundidade da democracia sem ultrapassar os limites estruturais que o capitalismo lhe traça?”. (BÓRON, 1999, p.48).

Partindo destas considerações, pode-se concordar com Colares que afirma,

[…] a gestão democrática está sofrendo sérios riscos de ser inviabilizada, como decorrência da reação dos setores conservadores, principalmente em locais tradicionalmente controlados pelos coronéis e pelos dirigentes políticos, inconformados com o fato de as próprias comunidades tomarem as iniciativas das decisões (COLARES, 2003, p.97).

Em relação à educação, todo esse “pano de fundo” reflete na realidade da prática administrativa escolar no Brasil que acompanhou o modelo da administração clássica, segundo os modelos tradicionais do Taylorismo e do Fordismo, em que características como a centralização das decisões, a fragmentação do trabalho e a alienação influenciaram as práticas autoritárias no setor educacional. Para Fortuna,

[…] esta forma de perceber a administração, a partir dos modelos de Taylor, Fayol e Ford, recebe notável reforço durante a década tecnocrática de 70, quando a educação é valorizada e legitimada pela Teoria do Capital Humano, quando serão promovidas ações na área educacional voltadas para a modernização da escola e a preocupação com os métodos e técnicas que se caracterizam pela neutralidade, objetividade e racionalidade (FORTUNA, 2000, p.17).

Em meio às influências do “tecnicismo” e da Teoria do Capital Humano, a gestão educacional é concebida simplesmente pela ótica da técnica. O dirigente educacional limita sua ação à função de gerente, preocupando-se única e exclusivamente com o controle e a avaliação, num exercício meramente burocrático.

Tendo em vista este passado autoritário e os riscos de ser inviabilizada, torna-se mister resgatar os clamores dos educadores pela democratização da sociedade e da escola pública, traduzidos nos preceitos legais da Constituição de 1988 e verificar como foram ressignificados nas políticas educacionais da década de 90.

Considerações Finais:

O processo de democratização no Brasil tem sido, historicamente, condicionado por um conjunto de contradições, recuos e avanços que têm dificultado a ampliação da democracia. Na democracia brasileira a participação popular precisa ir além das limitações da democracia e da representação política, em que o cidadão delega o direito de decidir e abdica dos direitos em relação não assumindo qualquer responsabilidade direta em relação às funções públicas.  Ocorre um distanciamento da cidadania ativa, em que o cidadão é instituído como portador de direitos e deveres, mas essencialmente criador de direitos, para abrir novos espaços de participação política. Com isso, pode-se inferir que para uma democracia e uma cidadania ativa no Brasil torna-se imprescindível superar os vícios, a cultura autoritária e os entraves da representação política. A proclamação de mecanismos de participação popular no texto da Constituição por si só, não assegura sua implementação.

Os reflexos dessa concepção hegemônica de democracia na esfera educacional e as conexões com as políticas educacionais brasileiras da década de 1990 acarretam, no âmbito das reformas educacionais, um conjunto de metas e prioridades condizentes aos novos padrões de regulação do capitalismo, ditados pelo modelo neoliberal. O capitalismo apresenta-se como cenário macro desse processo, que vive hoje um processo de reestruturação produtiva, apoiando-se na força da ideologia neoliberal, provocando redefinições no papel do Estado, nas políticas e na educação.

Nesse cenário macro, verifica-se a atuação da lógica do mercado que concebe a educação como uma mercadoria, provocando uma mercantilização de seus programas e objetivos. As reformas educacionais coerentes com o modelo neoliberal são implementadas, em sua maioria, como parte de um mecanismo de submissão da educação ao figurino do capital. O individualismo e a competitividade passam a ser as categorias centrais na escola, perpassando seu currículo. Verifica-se a materialização de uma gestão e uma organização do trabalho escolar conduzidas pelos ditames do mercado.

A legislação educacional da década de 1990 traduz a comprovação de que a política educacional foi concebida e praticada em oposição às reivindicações e aos anseios da comunidade escolar. Além disso, como legado presencia-se na década de 1990 que a categoria da participação instituiu-se nos marcos das democracias representativas. O que se observa no geral são propostas participativas que encontram ressonância mais no âmbito da retórica do que da prática. As experiências de gestão municipal que assumem uma radicalidade democrática na gestão da coisa pública e ampliam concretamente o potencial participativo, configuram-se como episódios isolados e na contramão da política neoliberal e inseridas num cenário, no caso do Brasil, marcado por uma cultura política de tradição centralizadora, patrimonialista e clientelista.

Referências bibliográficas:

 

ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.

AZEVEDO, José Clóvis de. Escola Cidadã: a experiência de Porto alegre. In: OLIVEIRA, Dalila Andrade e DUARTE, Marisa R. T. (org). Política e Trabalho na Escola: administração dos Sistemas Públicos de Educação Básica. Belo Horizonte: Autêntica, 2001 p. 143-155.

BÓRON, Atílio. Os “novos Leviatãs” e a polis democrática: neoliberalismo, decomposição estatal e decadência da democracia na América Latina. In: SADER, Emir e GENTILI, Pablo (orgs). Que Estado para que Democracia? Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

BRASIL Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Rio de Janeiro: FAE, 1988.

______.Lei nº 9394 de 20 de dezembro de 1996- estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União. Brasília, DF, de 23/12/96.

COLARES, Anselmo Alencar e COLARES, Maria Lília I. Sousa. Do Autoritarismo repressivo à construção da democracia participativa: história e gestão educacional. Campinas, SP: Autores Associados, São Paulo, SP: ANPAE, 2003.

FORTUNA, Maria Lúcia de Abrantes. Gestão Escolar e Subjetividade. São Paulo: Xamã, 2000.

SADER, Emir. Estado e Democracia: os dilemas do socialismo na virada de século. In: SADER, Emir e GENTILI, Pablo (orgs). Que Estado para que Democracia? Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

 

[*] Doutora em Educação. Professora do Curso de Pedagogia da Universidade Federal de Uberlândia- FACIP – Faculdade de Ciências Integradas do Pontal.

Deixe um comentário