Colunistas Crônicas Cultura literatura Livros Margarete Hülsendeger Resenha

DE VOLTA ÀS TERRAS DE GILEAD

DE VOLTA ÀS TERRAS DE GILEAD

Margarete Hülsendeger

 

Aguardem, aconselho-os silenciosamente: pois vai ficar pior.

Margaret Atwood

Em 2017 escrevi uma resenha sobre uma obra que passados mais de 30 anos ainda fazia muito sucesso. Como expliquei naquela época, a história era encarada por muitos críticos como uma espécie de manifesto feminista, pois tratava, de maneira metafórica, da submissão a qual estavam (e estão) sujeitadas as mulheres. A escritora canadense Margaret Atwood, ao escrever O conto da Aia (1985)[1], imaginou uma sociedade distópica onde o poder estava nas mãos dos homens e as mulheres, a fim de ser melhor controladas, haviam sido divididas em classes ou castas: as Esposas, as Tias, as Marthas, as Econoesposas e as Aias. No entanto, mesmo que na aparência, as mulheres tivessem status sociais diferentes – as Esposas estariam no ápice da pirâmide social enquanto as Aias ocupariam a base – a verdade é que a servidão era a marca de todas elas.

O Conto da Aia fez tanto sucesso quando do seu lançamento que recebeu o Governor General’s Awards (1985) e o primeiro Prêmio Arthur C. Clarke (1987), sendo também nomeado para o Prêmio Nebula (1986), o Man Booker (1986) e o Prêmio Prometheus (1987). Além disso, foi objeto de adaptação para um filme (1990), uma ópera (2000), uma série de TV (2017, 2018, 2019) e uma graphic novel (2019).

Talvez não querendo ficar à margem de todo o êxito conquistado por sua obra, Margaret Atwood decidiu escrever uma continuação que intitulou Os testamentos (2019)[2]. Nesse novo livro, a trama ocorre quinze anos depois que a Aia Offred fugiu de Gilead, com a história sendo narrada, em primeira pessoa, por três personagens femininas que se encontram ligadas por um passado comum: Tia Lydia e as jovens Agnes Jemima e Daisy. Desse modo, Atwood, apesar de criar uma sociedade na qual apenas os homens têm voz, opta, novamente, em abrir espaço para que as mulheres possam contar suas experiências, dando legitimidade aos seus testemunhos.

Tia Lydia já havia aparecido em O conto da Aia como mais uma engrenagem nessa sociedade que sistematicamente desvaloriza e menospreza a mulher. Ela é uma personagem aterradora, responsável pela doutrinação e, caso seja necessário, pela disciplina das mulheres que se tornarão Aias. Junto com outras Tias, ela também ajuda a compor o arcabouço ideológico que irá determinar o comportamento feminino em Gilead.

No entanto, passados 15 anos, Margaret Atwood nos apresenta uma Tia Lydia completamente diferente. É dela o manuscrito, encontrado séculos mais tarde, com informações que demonstram o nível de corrupção no qual Gilead havia mergulhado. Além disso, a autora revela quem foi Tia Lydia antes do golpe e de que forma ela colaborou para a queda das estruturas de poder que mantinham Gilead funcionando. Um aspecto interessante do testemunho de Tia Lydia é o fato de ela compreender que não está escrevendo para alguém que vive no seu presente; na verdade, sua narrativa pertence a um leitor anônimo do futuro com o qual quer, não só compartilhar suas vivências, mas, quem sabe, conseguir algum tipo de redenção.

A jovem Agnes, ou testemunha 369A, tem como função mostrar como está formada a sociedade de Gilead já que cresceu dentro dela. Tendo sido criada como filha de um casal do alto escalão, o Comandante Kyle e sua Esposa Tabitha, Agnes é ensinada desde a infância a se comportar como uma “mulher decente”. Uma de suas primeiras lições é aprender a ocultar o corpo dos olhos dos homens, pois, segundo lhe foi ensinado, a simples visão de um tornozelo feminino teria o poder de despertar uma luxuria que não eles saberiam controlar. Desse modo, em Gilead o estupro ou qualquer ato de violência contra a mulher, nunca seria culpa daquele que o pratica, mas da vítima. Ademais, as jovens são preparadas para aceitar com normalidade os casamentos arranjados, o abuso de pais e maridos e a vergonha de, sabendo-se estéril, ter de compartilhar o esposo com uma Aia. Se em O conto da Aia, a partir do ponto de vista de June/Offred, já havíamos tido um vislumbre desse universo machista e puritano, em Os testemunhos nos aprofundamos ainda mais em seus costumes, comportamentos e perversões.

Daisy, ou testemunha 369B, é o contraponto de Agnes. Ela foi criada fora de Gilead por um casal que logo se descobre não serem seus verdadeiros pais. No entanto, apenas quando completa 16 anos é que Daisy percebe que toda a sua vida havia sido uma grande farsa. A partir desse momento, ela se vê a volta com uma série de situações que culminam com a sua ida para Gilead com o propósito de recolher provas que demonstrem o grau de perversidade dessa sociedade. É nesse ponto que ocorre o encontro entre Tia Lydia, Agnes e a própria Daisy, um encontro que irá revelar as origens das duas jovens e sua possível relação com a Aia Offred.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

O ritmo de Os testemunhos é diferente de O conto da Aia. Enquanto o primeiro é mais dinâmico, com três narradores oferecendo seus respectivos pontos de vista, o segundo livro é mais introspectivo já que está centrado em apenas uma personagem e suas aflições quando se vê prisioneira de um regime ditatorial. Além disso, Os testemunhos tem um ar de thriller de espionagem, com muitas reviravoltas e mistérios.

Na última parte do livro, Atwood apresenta a comunicação de um historiador em um Simpósio – Décimo Terceiro Simpósio de Estudos Gileadianos –, na qual ele apresenta um diário, passado de geração a geração como espólio de uma herança, onde são encontradas informações inéditas sobre como estava organizada Gilead. Obviamente o diário é aquele que foi escrito por Tia Lydia séculos antes. Lembremos que a autora já havia utilizado esse recurso em O conto da Aia, a diferença é que nesse primeiro livro os pesquisadores descobriram um baú com fitas supostamente gravadas pela Aia Offred. A impressão ao repetir essa mesma fórmula é que autora não quer deixar muito para imaginação do leitor, pois se esforça em responder todas as perguntas, colocando todos os pingos nos “is”.

Se você leu e gostou de O conto da Aia leia Os testemunhos, nem que seja para dar um encerramento. Se você não leu, não precisa se preocupar pode ler essa continuação, pois qualquer lacuna que poderia comprometer sua compreensão foi preenchida pela autora. E se você não leu e nem quer ler não se estresse, assim como ocorreu com o primeiro livro, esse segundo também vai virar série: o streaming Hulu e o estúdio MGM, responsáveis pelo O conto da Aia, compraram os direitos de Os testamentos para uma nova série de TV[3]. De qualquer modo, seria interessante você dar uma “espiada” nos livros e/ou nas séries, pois em tempos conturbados é sempre bom entender como sociedades autoritárias nascem, crescem e se desenvolvem. Leia e/ou assista, você vai gostar!

[1] ATWOOD, Margaret. O Conto da Aia. São Paulo: Rocco, 2017.

[2] ATWOOD, Margaret. Os testamentos. São Paulo: Rocco, 2019.

[3] Disponível: https://www.omelete.com.br/series-tv/the-testaments-continuacao-handmaids-tale. Acesso: 16 jun 2020.

Deixe um comentário