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O UNIVERSO FANTÁSTICO DE HARUKI MURAKAMI

Margarete Hülsendeger

As pessoas possuem um desejo que se transforma em combustível, e este se torna a principal razão de viver. É impossível viver sem desejo. Mas é como tirar a sorte jogando uma moeda para o alto. Nunca se sabe se o resultado será cara ou coroa, até que ela caia ao chão.

Haruki Murakami

Em seu livro Romancista como vocação[1], Haruki Murakami explica que ao escrever romances o escritor responde a uma espécie de força interior que o impulsiona a fazê-lo: “É pura perseverança e resistência, apoiadas em um longo e solitário trabalho”, qualidades e requisitos indispensáveis para todos os que desejam se tornar escritores profissionais. E quando o autor se propõe a escrever narrativas extensas esses dois atributos se tornam ainda mais importantes porque a tarefa pode se prolongar, não por semanas ou meses, mas por anos. E esse, com certeza, foi o caso de Murakami quando decidiu escrever 1Q84[2].

A obra está dividida em três partes somando mais de 1200 páginas. Se formos procurar outros livros do autor verificaremos que muitos deles têm uma extensão razoável: Kafka à beira mar[3], por exemplo, tem mais de 500 páginas. Murakami diz que quando decide escrever um romance que tenha, para ele, um sentido importante, precisa de um espaço que possa usar de maneira ilimitada e com total liberdade. Ele acrescenta que, ao iniciar um trabalho, desse tipo é invadido por uma sensação que se assemelha a uma torneira quando é completamente aberta. Por isso, Murakami afirma que escrever longos romances constitui uma faceta essencial da sua vida como escritor.

Se focarmos nessa imagem da torneira aberta poderemos entender um pouco melhor o que temos em mãos quando nos propomos a ler 1Q84. Nos três volumes a capacidade imaginativa do autor está a pleno vapor. Em suas mais de 1200 páginas vamos encontrar uma história de amor que transcende o tempo e o espaço, seitas secretas, seres fantásticos, espíritos presos a suas antigas vidas, assassinos cultos, violência doméstica e conspirações. Apesar da diversidade de temas, todos os elementos que compõem a narrativa estão muito bem amarrados em uma história cujos títulos dos capítulos são os nomes dos personagens principais: Aomame e Tengo.

Aomame é uma mulher de 30 anos, uma personal trainer, que nas horas vagas é uma assassina de aluguel. Tengo, por sua vez, é um homem, também de 30 anos, um professor de matemática, que aspira ser escritor. Os dois se conheceram na escola quando tinham apenas 10 anos e mesmo tendo frequentado a mesma sala de aula nunca conversaram. No entanto, um dia, quando estavam sozinhos, deram-se as mãos em silêncio e esse gesto único ficou marcado na memória de ambos por vinte anos.

Harami Murakami

Desse modo, no primeiro volume, Murakami apresenta esses dois personagens descrevendo seus sonhos e anseios, assim como diversos acontecimentos do seu dia a dia: onde moram, o que comem, com quem se relacionam, em que problemas se envolvem. Mesmo vivendo na mesma cidade, nunca se encontraram, até que uma série de eventos começa a aproximá-los. O primeiro é o ingresso dos personagens em um outro mundo. Nele durante à noite é possível observar no céu duas luas: “uma lua amarela e familiar e uma outra mais nova, menor e esverdeada”. Aomame passa a chamar esse estranho mundo de 1Q84 já que a história se passa no ano de 1984, uma clara referência ao romance distópico de George Orwell. Tengo, por outro lado, vai chamá-lo de “Cidade dos gatos”.

No segundo volume os dois personagens, imersos nesse mundo diferente, acabam se tornando alvos de uma seita que utiliza meninas em iniciações religiosas de cunho sexual. Aomame recebe, por meio de uma “velha senhora”, a tarefa de assassinar o “líder” dessa seita, um homem misterioso, aparentemente capaz de ouvir uma “voz” que determina os destinos de seus acólitos. Já Tengo é contratado para reescrever um livro cuja autora é uma jovem excêntrica de 17 anos. O título da obra é “Crisálida do ar” e nele narra-se as aventuras de uma menina em um lugar onde existem duas luas e é governado por seres – o “Povo Pequenino” – que a partir do ar criam casulos onde são gestados seres humanos, imagem que nos remete a um filme famoso dos anos 1970, “Invasores de Corpos”. A menina da história é a autora do livro, assim como filha do “líder” que Aomame precisa matar.

No último livro Murakami começa a atar os fios de sua história, uma tarefa nada fácil em uma narrativa tão longa. Assim, enquanto Aomame se esconde após ter assassinado o “líder”, Tengo começa a descobrir alguns fatos de seu passado. Para que essas revelações possam ocorrer, o autor introduz outro personagem, o investigador privado Ushikawa, uma figura grotesca de cabeça disforme e pernas arqueadas. É graças a ele que o leitor descobre o que aconteceu com a mãe de Tengo. Também se deve a ele o reencontro de Tengo e Aomame.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

Apesar da atmosfera fantástica e até onírica de 1Q84, chama a atenção o número de vezes que encontramos Aomame e Tengo preparando refeições (o espaço dado à comida nos romances de Murakami é bem significativo) ou realizando exercícios. A presença desses elementos do cotidiano reforça a sensação de que os personagens, mesmo com suas dúvidas e dilemas, estão muito à vontade consigo mesmos. Como diz Aomame, estamos sozinhos, mas não solitários. Um sentimento que autor japonês parece compartilhar com Fernando Pessoa quando diz: “A liberdade é a possibilidade do isolamento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo”. Essa constatação em tempos de pandemia é, na minha opinião, bastante reconfortante.

Para Murakami, o objetivo de todo o escritor deve ser o de penetrar na parte mais profunda da consciência, submergindo na escuridão do coração. Assim, quanto mais extensa é a história, mais o escritor se aprofunda nos abismos da natureza humana. Nesse sentido, 1Q84 é uma narrativa cheia de passagens subterrâneas, muitas delas “perigosas”, onde habitam seres que desejam ofuscar quem se aventura em seu território. É, nas palavras do autor, um lugar onde não existem indicações ou mapas, zonas nas quais os labirintos podem levar o leitor por caminhos desconhecidos. Portanto, se você não teme aventurar-se nos subterrâneos de Murakami, leia 1Q84 e permita que Aomame e Tengo o guie nesse universo fantástico no qual duas luas coexistem no mesmo céu e os gatos, à noite, governam a cidade.


[1] MURAKAMI, Haruki. Romancista como vocação. Tradução do japonês Eunice Suenaga. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2017 (E-book).

[2] MURAKAMI, Haruki. 1Q84 (1,2,3). Tradução Lica Hashimoto. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2013 (E-book).

[3] MURAKAMI, Haruki. Kafka à beira-mar. Tradução Lica Hashimoto. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2008 (E-book).

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