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LITERATURA DE ENTRETENIMENTO

Margarete Hülsendeger

Leia, leia, leia. Leia tudo – bobagem, clássicos, bom e ruim, e veja como são feitos. Assim como um carpinteiro que trabalha como um aprendiz e estuda o mestre. Leia!

William Faulkner

O Prêmio Jabuti é considerado o maior prêmio literário brasileiro. Ele nasceu em 1958 com a proposta de premiar autores, editores, ilustradores, gráficos e livreiros que mais se destacassem em cada ano. Desde então, ele tem passado por várias reestruturações. Se na sua primeira versão premiava-se apenas sete categorias – Literatura, Capa, Ilustração, Editor, Gráfico, Livreiro e Personalidade Literária – em 2020 o prêmio foi dado a vinte, distribuídas em quatro eixos temáticos – Literatura, Ensaios, Livro e Inovação.

Em 2020, no entanto, o que chamou a atenção não foi o fato de a premiação ter sido, em decorrência da pandemia, completamente virtual. O que despertou o interesse de críticos, autores, editoras e leitores foi a inclusão, no eixo “Literatura”, da categoria “Romance de entretenimento”. Segundo um dos curadores do Prêmio, o jornalista Pedro Almeida[1], se a “ficção literária” preocupa-se com a forma como o romance é escrito, a “ficção comercial” ou de “entretenimento” dá destaque ao enredo da história. Portanto, para a curadoria do Jabuti, Stephen King e Dan Brown, por exemplo, pertenceriam a segunda categoria enquanto Virginia Wolf e Jorge Luis Borges fariam parte da primeira.

Quando questionado se com essa iniciativa estar-se-ia premiando a literatura “ruim”, Almeida respondeu que muitas das avaliações contrárias estavam mais ligadas a preconceitos do que a análises objetivas sobre a qualidade da obra em si. Para o curador, existe valor tanto no texto literário quanto no de entretenimento que, em geral, “não foca na arte, no uso da língua, mas traz uma narrativa especial, criativa, que ‘prende’ o leitor mais por seu enredo”. Almeida acrescenta que criar essa categoria é uma forma de distinguir os melhores trabalhos nesse gênero e que ao valorizá-los pretende-se ajudar a “a promover, ano após ano, a qualidade dos livros, editoras e autores que os produzem, além de reconhecer o amplo universo de leitores que bebe e se inspira nessa fonte”.

Não vou entrar em discussões sobre o que é e o que não é arte, porque considero um debate vazio tendo em vista a grande versatilidade dos projetos artísticos contemporâneos e o fato de que o conceito de arte muda conforme a época e o lugar. Contudo, se quisermos recuar no tempo, não teremos problemas em encontrar inúmeros exemplos que reforçam essa tese. Sempre existiram grandes escritores (e artistas em geral) que em seu tempo não foram aceitos como tal, mas que hoje são considerados referências no mundo das letras: Franz Kafka, Emily Dickson, Herman Melville, Lima Barreto, Oswald de Andrade e muitos outros.

George Orwell[2] (1903-1950) dizia que foi o poeta George K. Chesterton (1874-1936) o criador da expressão “bom livro ruim”. Nessa categoria estariam os livros sem pretensões literárias, mas que continuam legíveis depois de obras “mais sérias” terem sido esquecidas. Ele dá como exemplo as narrativas de Conan Doyle (19859-1930) nas quais aparece seu icônico personagem, Sherlock Holmes, que continua, até os dias atuais, encantando leitores de todas as idades. Para Orwell, a existência desse tipo de literatura é a prova de que “arte não é a mesma coisa que cerebração”. É possível nos entretermos, ficarmos inquietos e até nos emocionarmos com um livro que nosso intelecto, objetivo e prático, se recusa a levar a sério. Assim, segundo Orwell, enquanto o homem precisar de “distração de vez em quando, a literatura ‘leve’ tem lugar reservado”.

As duas posições apresentadas – a de Pedro Almeida e a de George Orwell –, apesar dos anos que as separam, parecem convergir. Ambos atribuem valor a uma literatura cuja a preocupação é distrair com um enredo bem construído e personagens com os quais o leitor comum pode se identificar. Ambos acreditam que essas obras merecem reconhecimento da comunidade literária. Por isso, saúdo a iniciativa da curadoria do Prêmio Jabuti em incluir, na premiação de 2020, esse gênero literário, legitimando a existência não só dos muitos escritores que a ela se dedicam, mas o impacto que essas obras têm sobre um público, muitas vezes, menosprezado e ignorado pela crítica.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

No primeiro ano dessa nova categoria o premiado com o Jabuti foi o jovem escritor carioca Raphael Montes, com o livro Uma mulher no escuro[3]. A história é um thriller policial cuja protagonista é uma mulher que na infância teve a família assassinada. Victória Bravo é uma jovem com severos problemas psicológicos, mergulhada em pesadelos e com um medo crônico de se relacionar. Vinte anos depois do assassinato dos pais e do irmão ela se vê envolvida em uma série de acontecimentos que a fazem reviver os momentos que antecederam o crime, descobrindo no processo que nem tudo é o que aparenta. Em uma narrativa intensa e dinâmica, Montes leva o leitor a um mergulho na mente da tímida e assustada Victória, difundindo pistas onde se misturam a verdade e a mentira, a realidade e a fantasia. Raphael Montes publica desde 2012 e agora tem no seu currículo, além do Prêmio Jabuti, a criação de uma série de TV lançada pelo Netflix e baseada no seu livro Bom dia, Verônica (2016).

Raphael Montes é o primeiro a receber o Prêmio Jabuti nessa nova categoria. A partir de agora, no entanto, outros autores terão a oportunidade de ver seus trabalhos reconhecidos em um certame que antes era destinado apenas ao que se costuma chamar de “alta literatura”. Sempre haverá aqueles que irão se opor a essas iniciativas, alegando que um romance deve ser classificado apenas dentro de dois grupos: boa e má literatura. Não é o meu caso. Como já disse antes, aplaudo a resolução da curadoria do Jabuti, pois acredito que, antes de mais nada ou além de qualquer preconceito, é preciso estimular a leitura, em especial nos mais jovens. Ler deve ser sempre uma fonte de prazer e de conhecimento, não importa se procuramos uma história que nos faça refletir sobre a natureza humana ou se queremos apenas mergulhar em um universo mágico povoado de fadas, duendes e magos. Como disse o espanhol Miguel de Unamuno, ler muito é um dos “caminhos para a originalidade; uma pessoa é tão mais original e peculiar quanto mais conhecer o que disseram os outros”. Seja, então, original e leia!

[1] Disponível: https://www.publishnews.com.br/materias/2020/03/25/o-que-e-romance-de-entretenimento-a-nova-categoria-do-premio-jabuti. Acesso: 18 jan. 2021.

[2] ORWELL, George. Dentro da Baleia e outros ensaios. Organização Daniel Piza. Tradução José Antonio Arantes. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

[3] MONTES, Raphael. Uma mulher no escuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

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