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O PREÇO DA DESONRA

Margarete Hülsendeger

A gente se acostuma com as coisas ficando mais difíceis; a gente acaba não se assustando mais quando o que era mais difícil do difícil fica ainda mais difícil.
J. M. Coetzee

A África é um continente desconhecido para a maioria dos brasileiros. Assim como acontece com muitos estrangeiros quando o assunto é a floresta amazônica (ou o Brasil), associamos a ela uma série de estereótipos que pouco dizem da realidade dos países e das pessoas que lá vivem. Desconhece-se, por exemplo, que sua extensão total o torna o terceiro maior continente do planeta – depois da Ásia e da América –, o segundo continente mais populoso – depois da Ásia – e, mais importante, que possui uma grande diversidade étnica, cultural, social e política. Portanto, a África, sem a menor dúvida, é muito mais do que os filmes de Hollywood nos levam a acreditar.

A existência de problemas graves – como a fome, as doenças e as guerras –, não é um “privilégio” do continente africano e nem desculpa para ignorarmos o quanto devemos à África em matéria de cultura. Do mesmo modo, eu precisaria de muito mais tempo e espaço para discorrer sobre o quanto nós, brasileiros, devemos a esse continente. No entanto, se o assunto é literatura não há dificuldades em ressaltar que a África não só tem escritores conhecidos no mundo inteiro – Mia Couto, Ondjaki, Chimamanda Ngozi, José Eduardo Agualusa –, como já recebeu quatro Prêmios Nobel: Wole Soyinka da Nigéria, em 1986; Naguib Mahfouz, do Egito, em 1988; Nadine Gordimer, em 1991, e John Maxwell Coetzee, em 2003, ambos da África do Sul. Todos laureados não só pela qualidade da sua produção literária como por suas posições na defesa dos direitos humanos. Infelizmente, dos quatro premiados, apenas um ainda está vivo, o sul-africano John Maxwell Coetzee.

Coetzee é natural da Cidade do Cabo, onde nasceu em 9 de fevereiro de 1940. Avesso à mídia, em suas poucas entrevistas ele costuma repetir que o que as pessoas precisam saber sobre ele está em seus livros. Se isso é verdade, o leitor pode ficar tranquilo, pois tem a sua disposição uma vasta obra para descobrir quem é esse escritor. Considerado um dos principais autores de língua inglesa da atualidade, foi o primeiro a receber dois Booker Prize (em 1983, com Vida e Época de Michael K, e, em 1999, com Desonra), o mais prestigiado prêmio da Inglaterra. Além disso, foi um ferrenho opositor do apartheid, considerado por ele “um sistema de segregação forçada baseada na raça e na etnia, praticada por um grupo excludente e autoproclamado para consolidar uma conquista colonial e, em particular, para manter e estender seu domínio sobre uma terra e seus recursos naturais”[1]. Por conta dessa militância, muitas de suas obras focam nas condições de vida de pessoas comuns que, durante anos, viveram sob esse regime de exclusão. Uma dessas obras é Desonra, um livro impactante e, por consequência, inesquecível.

O título da obra parece despretensioso. No entanto, já nas primeiras páginas começamos a notar que a complexidade do texto é bem maior do que o nome da obra deixa entrever.

O que a palavra “desonra” realmente significa? Vergonha? Humilhação? Quanto é preciso cair na escala moral para causarmos a desonra de alguém? E se formos nós os desonrados? Pode-se justificar o estupro? E o abate de animais? Qual a diferença entre um gesto de benevolência e um ato de crueldade? Onde está a linha que separa o certo do errado? Essa linha realmente existe ou ela depende das circunstâncias? Um dos grandes méritos do livro é justamente esse: encher-nos de perguntas, a maioria delas difíceis de responder.

A história começa na Cidade do Cabo, no apartamento de uma prostituta, e termina no interior da África do Sul, em uma clínica para animais. O personagem principal é um professor universitário – David Lurie – vivendo a crise da meia idade com todas as dúvidas e angústias que esse período pode provocar. O envolvimento com uma aluna bem mais jovem complica ainda mais a situação, pois quando o caso vai a público, ele se vê obrigado a abandonar casa e emprego, para se refugiar na fazenda de sua única filha. Uma reviravolta completa que o tira da sua zona de conforto e o joga em um universo que até então ele desconhecia: a dura realidade da África do Sul pós-apartheid.

Diferente do que ocorre no filme de Quentin Tarantino “Django Livre”, a palavra “negro” nunca aparece. É tudo muito sutil, como se Coetzee tivesse receio de ferir os sentimentos do leitor. Contudo, isso não significa que o preconceito e o ódio racial não estejam presentes. Ao contrário. Há muita raiva e ressentimento envolvidos, e a única válvula de escape é a violência. Uma violência marcada pelo conflito social e o rancor que a miséria e a falta de perspectivas só fazem crescer.

Coetzee não oferece respostas, e muito menos soluções, para todos os conflitos que emergem das páginas de Desonra. Ele também não poupa o leitor. A cada parágrafo nos exige cada vez mais. Oscilamos entre a certeza de que tudo tem uma explicação razoável e o sentimento de que a qualquer instante o caos pode se instalar na vida dos personagens. É angustiante acompanhar as tentativas do “desafortunado” professor de entender a dinâmica de uma sociedade que vê o homem branco como uma ameaça permanente a sua recém-conquistada e, portanto, frágil liberdade.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

Confesso que, em muitos momentos, senti as mesmas dificuldades de compreensão de David Lurie, talvez porque minha realidade seja semelhante à do professor: protegida, resguardada da miséria e da violência. Coetzee, em Desonra, nos dá a chance de vislumbrar o que aconteceria se o nosso mundo fosse, em um estalar de dedos, virado do avesso. A reflexão que ele nos sugere não é fácil. Implica colocar-se no lugar do outro, pois só assim seremos capazes de refletir sobre a pergunta que transpassa todo o texto: é possível relativizar a desonra? Leia e encontre a sua resposta.


[1] Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/25/cultura/1466868572_827141.html

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