Crônicas Margarete Hülsendeger Margarete Hülsendeger

INVEJA DO SONHADOR

Cena do filme Não Feche os Olhos

A virtude neste mundo é sempre maltratada; os invejosos morrerão, mas a inveja é poupada.

Molière

“A inveja é assim tão magra e pálida porque morde e não come” já dizia Francisco Quevedo, escritor espanhol do século XVII. Sem dúvida, esse é um dos sentimentos mais terríveis e amargos que uma pessoa pode experimentar. Não é por nada que a inveja compõe a lista dos sete pecados capitais. No entanto, poucas pessoas podem dizer que nunca a experimentaram. Ela está presente sempre que detectamos no outro algo que não temos e desejamos ardentemente ter, e não estou falando apenas de objetos materiais – uma casa. um carro novo, uma joia ou uma viagem. A inveja, como erva daninha, aparece de forma sorrateira, impregnando a mente com pensamentos capazes de despertar anseios antes desconhecidos. Eu, por exemplo, confesso, um pouco envergonhada, sentir inveja daqueles que dormem sem qualquer esforço. E, talvez, por isso, tenha me identificado com o poema “Insônia” de Álvaro de Campos. Para quem não o conhece esse poeta, trata-se de um dos alter egos do escritor português Fernando Pessoa (1888-1935), que fez uma biografia para cada uma das suas personalidades literárias, chamando-as de heterônimos.

Para mim, mais do que um poema, é de uma das melhores descrições do que ocorre quando não se consegue dormir.

Não durmo; não posso ler quando acordo de noite,

Não posso escrever quando acordo de noite,

Não posso pensar quando acordo de noite —

Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!

Só mesmo quem já passou noites em claro é capaz de avaliar os sentimentos de angústia e aflição provocados pela falta de sono. Quem não carrega, ou experimenta, esse fardo demonstra uma capacidade de desligamento invejável, pois, apesar das ansiedades e preocupações do dia a dia, consegue desconectar, permitindo que o corpo relaxe, os olhos se fechem e tudo se desvaneça. Uma proeza extraordinária para quem sofre de insônia. E é exatamente aí que reside a inveja.

O insone deita no escuro do seu quarto, no conforto da sua cama e não dorme. O insone, como diz Álvaro de Campos, não lê, não escreve e, muito menos, pensa. O insone atravessa a madrugada preocupando-se com o tempo que lhe resta de sono, sabendo que ao final, terá de enfrentar o dia sem ter dormido. Como diz o poeta, em outro verso:

Que horas são? Não sei.

Não tenho energia para estender uma mão para o relógio,

Não tenho energia para nada, para mais nada…

Imagine, então, o ressentimento de um insone quando vê alguém deslizando para o sono com facilidade. É difícil não sentir inveja.

Alguns dirão que essa facilidade também pode ser sinal de um problema mais sério. Não duvido. Entretanto, sabe-se que a falta de sono é a causa de importantes doenças como distúrbios de humor, diminuição da produção de insulina, envelhecimento precoce e até a redução da imunidade. Infelizmente, eu entendo um pouco do assunto e por isso admito invejar aqueles que, ao contrário de mim, dormem como bebês em qualquer lugar ou circunstância.

E os tratamentos? Eles não podem ajudar? Sim, podem, mas a questão não é essa. Quando digo que sinto inveja daqueles que dormem é porque gostaria de adormecer sem ter de utilizar qualquer tipo de tratamento. A dependência de uma pequena pílula para conseguir algumas poucas horas de sono é, no mínimo, frustrante, e me faz quase odiar essa Humanidade que “repousa e esquece as suas amarguras”.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

Reconheço, como disse antes, que a inveja é um sentimento terrível e infame. Porém, como não me ressentir de todas as horas nas quais fiquei desperta, olhando para o teto ou para o movimento inexorável dos ponteiros do relógio. Por isso, quando vejo pessoas adormecidas em lugares estranhos, em meio a desconhecidos, em um ambiente completamente distinto do seu quarto, é como se levasse um tapa. E nesses breves momentos, quando a inveja me pega desprevenida, sempre me pergunto, qual é o meu problema? O que estou fazendo de errado? Por que a minha mente insiste em permanecer ruminando sobre problemas passados, presentes e até futuros? O que me falta que não falta a eles?

Encontrar as respostas para essas perguntas não é um trabalho simples. Contudo, ao esbarrar no poema de Álvaro de Campos reconheci certas verdades sobre as quais um insone, crônico ou esporádico, deve refletir:

Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,

E o meu sentimento é um pensamento vazio.

Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam

— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;

Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam

— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;

Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,

E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.

Preciso dizer mais?

Deixe um comentário