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A mais odiada (e amada) de Sampa

urubu11

Mara Rovida*

Mara Rovida é jornalista, doutoranda no PPGCOM da ECA-USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo
Mara Rovida é jornalista, doutoranda no PPGCOM da ECA-USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo

Não tenho puderes em reconhecer-me no topo; sou a mais comentada, a mais famosa; sou um símbolo, mais do que isso, sou necessária.
Por minhas veias, corre um líquido escuro e fétido. Minhas extensões estão sempre tomadas por gente de todo tipo. Há quem aproveite para fazer comércio nos momentos em que fervo, em que saio da normalidade, em que enlouqueço.
Os pássaros que cantam para mim são negros e largos, têm asas potentes e garras afiadas; seu voo sempre acaba em minhas margens, onde pousam pesadamente sua corpulência tétrica. Ao lado de grandes roedores dispersos, essas aves criam um cenário de presságios, de mau agouro.
Sobre minha pele, derrama-se suor e sangue. Vidas se perdem e se esfacelam diariamente. Não há quem me bata nos índices macabros em toda a cidade. Mesmo com medo, não me deixam, não conseguem me substituir, me buscam desesperadamente em seus aparelhos e mapas coloridos. Quando perdidos na imensidão de concreto, o alívio é instantâneo ao me alcançar.
Disputam cada centímetro de meus braços e sou visitada o dia todo, sem tréguas, sem feriados, sem folgas. Já me esticaram por todos os lados na tentativa de aumentar minha capacidade de absorção. Mas, a demanda é tanta que nenhuma intervenção cirúrgica, mesmo operada pelos mais destros engenheiros, pode resolver. Assim, faço cada visitante penar da entrada à saída; faço com que se desloquem vagarosamente em boa parte do tempo; faço com que cada visita seja ainda mais insuportável. Gargalho estrondosamente de seu sofrimento, com a certeza de que no dia seguinte todos, sem exceção, me visitarão novamente.
Sou rainha e exijo sacrifícios. Sou, por tudo isso, aclamada, amada, odiada e marginalizada. Insubstituível guardiã dos principais portais dessa urbes, meu nome traz a vítima que sufoco um pouco mais a cada dia, o rio que insiste em correr por minhas entranhas abertas, o Tietê.
* Mara Rovida é jornalista, doutoranda no PPGCOM da ECA-USP e membro do Grupo de Pesquisa do CNPQ Comunicação e Sociedade do Espetáculo.
Imagem de Alex N
http://www.nundafoto.net/gallery/photo/1438-urubu-noir-coragyps-atratus

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