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Asfalto molhado


Gilda E. Kluppel
Chuva torrencial ao final da tarde, semáforo verde para os pedestres. Na esquina, uma senhora de cabelos brancos, calça comprida e longo casacão, começa a travessia da rua na faixa de segurança. De repente, escorrega e cai, sombrinha numa das mãos, a outra mão, estendida, procura um gesto que a acolha. Neste momento lembra-se do pai, ele sempre destacava a importância de pequenas atitudes, das quais não notamos, mas proporcionam a diferença necessária.
Entretanto, os transeuntes caminham rapidamente, existe o controle rígido do tempo, fragmentado pelos muitos afazeres para cumprir. Ninguém possui alguns minutos suficientes para tentar reerguer a senhora. Alguns míseros minutos capazes de atrasar um pouco a hora de chegar ao trabalho, a hora de ir ao médico, a hora do almoço e tantos horários agendados. Prevalece o interesse pessoal. Todos adotam uma atitude insensível diante do ocorrido. Preferem não ver, sequer olham para a mulher, para não se incomodar e, assim, partem resignados na apatia.
O habitante da metrópole vive massacrado impetuosamente por um turbilhão de estímulos e informações, tornando-o amortecido. Deste modo, acostuma-se com todo o tipo de situação. Numa ausência de reação sofre uma espécie de anestesia e não se surpreende mais com uma cena atípica.
Esse homem urbano que emana das avenidas, ruas e becos, solitário em meio à multidão, observa a mulher e pensa “antes ela do que eu”. Com a segurança de que já presenciou tudo e nada pode abrandar o seu coração. Portanto, não lhe sobra o tempo para um gesto de atenção.

O semáforo abre, uma fileira de automóveis não avança, o motorista da frente aguarda, não sai do carro para atender a pedestre, pode se decompor e chegar com a roupa molhada para o seu compromisso. Apenas aguarda e lamenta os minutos de atraso. A senhora, aos poucos, consegue se levantar. Não se machuca muito, somente um mau jeito no cotovelo. Os carros atrás não percebem o acontecido e buzinam com vontade. Alguns notam algo diferente e criticam a falta de astúcia do motorista da frente, em não encontrar uma brecha por onde passar.
A mão, que ninguém desejou segurar, apanha rapidamente a bolsa, agora feliz por ninguém ter surrupiado sua carteira de dinheiro. Lembra novamente das palavras do pai, mas, com certeza, eram outros tempos que não voltam mais. Ela sente vergonha, o rosto corado denota o sentimento de quem cometeu uma gafe ao cair, atrapalhando a movimentação dos automóveis. Olha para as pessoas que atravessam a rua. As pessoas caminham rapidamente e observam a senhora com uma expressão de frieza. Ela fala sobre a enxurrada de água e, desconsolada, tenta explicar que a culpa foi do asfalto molhado.
 
Publicado originalmente em: revista Partes –

Asfalto molhado


 

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