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Entre cervejas geladas

Imagem extraída de: http://iguapensenato.blogspot.com.br/2013/01/conversa-de-bar.html

ENTRE CERVEJAS GELADAS

Margarete Hülsendeger

 

[…] porque hay frases que han conquistado su libertad: que hemos aprendido a escuchar, a leer, a escribir[1] (Alejandro Zambra).

 

– Vamos supor que alguém decidisse jogar todos os seus livros em uma fogueira e você só pudesse escolher um, apenas um, para salvar. Qual escolheria? – pergunta o repórter.

Rindo, o escritor não teve dúvidas em responder:

– Salvaria Conversa no Catedral[2].

– Tem certeza? – insisti o repórter.

– Tenho.

– E qual seria o motivo? Afinal, você tem tantas outras obras, igualmente famosas, que a crítica tem elogiado até quase à exaustão.

O escritor olha para o repórter e com um meio sorriso nos lábios, como quem diz você não sabe de nada, responde:

– Porque foi o livro que mais trabalho me deu. Eu o refiz várias vezes até sentir que que se escrevesse qualquer outra palavra estaria colocando em risco todo o meu esforço.

O diálogo acima, apesar de ser invenção, reproduz algo que o próprio autor diz no prólogo do livro. Para quem não sabe, ou ainda não adivinhou, o escritor é o peruano Mario Vargas Llosa, Prêmio Nobel de Literatura de 2010, e o livro é Conversación en La catedral (em português, Conversa no Catedral), publicado pela primeira vez em 1969. Segundo o próprio Llosa, foi uma obra escrita enquanto lia Tolstoi, Balzac e Flaubert e ganhava a vida trabalhando como jornalista, primeiro em Paris, depois em Lima, Washington, Londres e Porto Rico. De acordo com ele, “ninguna otra novela me ha dado tanto trabajo; por eso, si tuviera que salvar del fuego una sola de las que he escrito, salvaría ésta[3]”.

Eu cheguei a esse romance a partir da leitura de outro romance. No livro do cubano Leonardo Padura, O homem que amava os cachorros, em certo momento da história o narrador comenta que em um verão carregava na mochila, entre outros livros, Conversa no catedral, “do já excomungado Vargas Llosa, o romance que semanas depois me poria a espumar de pura inveja”. O narrador de Padura é um escritor frustrado, portanto, sua inveja diante do livro de Llosa é perfeitamente compreensível. Para falar a verdade, eu também espumei um pouco de inveja, pois se trata daquelas obras que a gente não consegue ler e depois seguir em frente. É preciso fazer uma pausa, refletir, deglutir, digerir para só, então, pensar em uma próxima leitura.

O título em espanhol é mais ambíguo do que o traduzido para o português, pois ao ler Conversación en la catedral, pode-se pensar que se trata de alguém confessando seus pecados para um padre em uma grande e suntuosa igreja. Talvez Llosa tenha feito de propósito, na tentativa colocar o confessionário e uma mesa de bar no mesmo nível. “La catedral” não é, portanto, uma igreja, mas um bar em uma das zonas mais pobres de Lima. Um bar próximo a um canil público onde dois homens, que há anos não se veem, encontram-se para falar de um passado do qual foram, simultaneamente, protagonistas e espectadores.

O passado revisitado é o período compreendido entre 1948 e 1956 quando o general Manuel A. Odría (1896-1974) governava o Peru. Os “conversadores” no bar “La Catedral” são Santiago “Zavalita” e o negro (“el zambo”) Ambrosio. O primeiro é filho de um rico industrial (don Fermín Zavala) que durante um tempo apoiou e colaborou com o regime de Odría; o segundo é o motorista, quase analfabeto, desse mesmo industrial. Entre um gole e outro de cerveja barata vai-se construindo uma narrativa ao estilo daquelas bonecas russas, as “matrioscas”, com as histórias sendo colocadas uma dentro da outra, de tal forma que, muitas vezes, elas se confundem e se misturam. Llosa não se preocupa em seguir uma linha de tempo linear, podemos estar lendo um trecho que se passa no início do regime de Odría, para, de repente, darmos um salto para frente ou para trás.

Do mesmo modo, todas as camadas sociais se cruzam criando uma teia de relações complexa que exige do leitor, não só atenção, mas, principalmente, comprometimento durante a leitura. Llosa ao mesmo tempo que apresenta a história de Amalia, a empregada doméstica que serviu à família de Zavalita e sua relação complicada e trágica com Ambrosio, também nos traz os bastidores da política peruana com a figura sinistra de Cayo Bermúdez (Cayo Mierda) – personagem inspirado em Alejandro Esparza Zañartu (1901-1985) – chefe da polícia secreta de Odría e, portanto, encarregado do aparato repressor responsável pelas prisões, torturas e deportações dos opositores ao regime.

Margarete Hülsendeger é Física e Mestre em Educação em Ciências e Matemática/PUCRS. É mestra e doutoranda em Teoria Literária na PUC-RS. margacenteno@gmail.com

Nesse romance recria-se, com a liberdade que é própria da ficção, a história política e social desses anos sombrios no quais, além das torturas e prisões, foi criada uma rede sem igual de delatores (“soplones”) dentro das universidades, sindicatos, repartições públicas e meios de comunicação. São muitos os personagens, muitas as histórias, mesmo que os narradores sejam sempre os mesmos, Zavalita e Ambrosio. A partir do ponto de vista desses dois personagens é possível reconstruir uma época na qual imperava um clima de cinismo, apatia, resignação e deterioração moral de um Peru que pode muito bem representar toda a América Latina. Nessas conversas aparece diante do leitor uma sociedade que silenciava diante de um regime que, além dos crimes característicos de uma ditadura, encobria uma profunda corrupção que começava no centro do poder e se espalhava por todos os setores e instituições.

No entanto, Conversa no Catedral não é considerado por muitos críticos uma novela histórica, pelo menos no sentido tradicional da expressão. O contexto social, político e econômico serve apenas como pano de fundo, pois o objetivo é apresentar, sem retoques ou disfarces, as diferentes faces da natureza humana. Segredos são revelados, máscaras são retiradas enquanto várias cervejas geladas são consumidas permitindo que palavras, durante tanto tempo aprisionadas, sejam expelidas e, consequentemente, expurgadas. Conversa no Catedral é, portanto, não só um marco importante na produção literária de Mario Vargas Llosa, mas um ponto de referência indispensável quando se deseja conhecer o melhor da literatura latino-americana.

[1] “[…] porque existem frases que conquistaram a sua liberdade: que aprendemos a escutar, a ler e escrever” (Tradução minha).

[2] LLOSA, Mario. Conversa no catedral. São Paulo, Companhia das Letras, 2013.

[3] “Nenhum outro romance me deu tanto trabalho, por isso, se tivesse de salvar do fogo um só, eu salvaria este” (Tradução minha).

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