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Os limites de uma amizade

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OS LIMITES DE UMA AMIZADE

Margarete Hülsendeger

 

Podes alcançar tudo na vida, podes vencer tudo à tua volta e no mundo, a vida pode oferecer-te tudo e podes tirar tudo da vida: mas nunca podes mudar os gostos, as inclinações, o ritmo da vida duma pessoa, aquela diferença que caracteriza por completo uma pessoa, a pessoa que é importante para ti, que te interessa

Sándor Márai

 

Quais são os elementos que contribuem para a construção de uma amizade? E quais aqueles que determinam o seu fim? Uma verdadeira amizade pode, realmente, superar tudo ou existem coisas insuperáveis? O que vemos no outro para que um dia passemos a chamá-lo de amigo? E o que esse outro pode fazer para que deixemos de chamá-lo assim?

Essas são algumas perguntas com as quais o escritor húngaro Sándor Marái (1900-1989) provoca o leitor no livro As velas ardem até o fim[1] (1942). Uma obra impactante, não só pelo tema, mas também pela forma delicada e sensível com a qual o autor aborda questões como a amizade, o amor e a traição. Toda a história se passa durante uma única noite, à luz de grossas velas azuis, quando dois amigos que não se viam a 41 anos se encontram para uma longa e dolorosa conversa. Dois homens – o aristocrata Henrik e o explorador Kónrad – na casa dos setenta anos que resolvem, durante essa única noite, trazer à tona as razões que os levaram a permanecer por tanto tempo afastados. Quatro décadas de separação, mais especificamente, quarenta e um anos e quarenta e três dias de absoluto silêncio.

A trama é feita de flashbacks que permitem ao leitor compreender em que circunstâncias os dois personagens se conheceram. Também é feita de detalhes que o leitor menos avisado deixa passar sem nem ao menos perceber. Várias vezes tive de retornar a uma página (às vezes várias) para entender que um determinado pormenor já havia sido mencionado e eu não havia entendido o seu significado. É com diz o narrador, “a realidade não é a verdade. A realidade é apenas um pormenor”. E é com esses pormenores que a narrativa vai sendo tecida, lentamente, sem pressa, no tempo que as grossas velas vão se queimando.

A história se passa na Hungria, no final do século XIX, em um castelo onde boa parte das salas e quartos estão fechados. O proprietário é chamado por todos que o conhecem de “general” (Henrik), filho de uma família aristocrática de tradição militar, que há quatro décadas tem por companhia apenas seus serviçais, em especial, sua velha babá, Nini. É em meio a essa solidão autoimposta que o general recebe uma carta na qual um antigo amigo, depois de quarenta anos de ausência, convida-se para jantar. A ordem é abrir o palácio, limpar a prataria, arejar as salas e os quartos por tanto tempo fechados. O momento é tão importante que Nini pergunta ao general: “Queres que tudo seja como antigamente?”, ao que ele responde: “Quero. Exatamente. Como tinha sido ultimamente”. O “general” quer reviver o passado e isso inclui o espaço que os dois amigos um dia compartilharam.

Todas as ordens são dadas de forma contida e todas são cumpridas da mesma maneira. A chegada do amigo é apenas mais um aspecto nessa narrativa que prima pela contenção e a emoção reprimida. No entanto, enquanto esperamos, sim porque a espera se estende ao leitor, ficamos conhecendo um pouco a história do “general” e do começo dessa amizade. O autor nos dá uma visão de um período no qual o castelo sombrio foi o palco de grandes e suntuosas festas, da relação entre os pais do “general” e de como Kónrad foi sendo aceito no seio dessa aristocrática família. A narrativa da juventude compartilhada de Henrik e Kónrad ocupa boa parte do livro, uma juventude na qual a amizade entre os dois personagens é o elemento central. Dois meninos sozinhos que ao conseguirem superar as diferenças sociais e econômicas, construíram uma amizade “tão séria e silenciosa, como todo os sentimentos que duram uma vida inteira”. Tudo dava a entender que se tratava de uma amizade sólida que, não só os isolou do mundo, como os fez compartilhar segredos e sonhos.

No entanto, sabe-se, desde o início, que essa amizade não sobreviveu ao tempo, ela rompeu-se por algum motivo que o narrador mantém oculto ao leitor. É a chegada de Kónrad ao castelo que revelará a causa desse rompimento. O encontro dos dois amigos não é fácil, é tenso, afinal são quarenta anos e quarenta e três dias de silêncio. Tão tenso que Nini, a velha serviçal, pergunta: “O que queres deste homem?”, ao que Henrik responde com apenas duas palavras: “A verdade”. Desde o momento que apertam as mãos “muito educadamente” sabemos, sentimos, que estamos à beira de um precipício e, mesmo assim, seguimos adiante porque precisamos, queremos, entender.

Depois do jantar, à luz das velas azuis, Kónrad revela que passou a maior parte desses quarenta anos vivendo nos Trópicos e lança-se em um monólogo onde descreve como os “trópicos corroem as boas maneiras, como a lepra corrói a pele do corpo humano”. Henrik ouve sem interromper até que um nome que ainda não havia sido mencionado aparece na conversa, Krisztina. Aqui o leitor logo novamente percebe a presença de um novo ponto de inflexão, pois Kónrad cala-se e quem passa a falar é Henrik. E é por sua voz que se descobre o “segredo” que está por trás dessa amizade interrompida.

Krisztina que tem um lugar reservado à mesa, mas que no tempo da narrativa está vazio. Krisztina a jovem esposa do general que morreu oito anos após a partida de Kónrad. Krisztina que em uma leitura simplista, quase ingênua, poderia ser considerada a causa da ruptura, afinal, “Eros está no fundo de todos os afectos, de todas as relações humanas”. Contudo, o autor nos surpreende com um monólogo primoroso de Henrik falando do profundo afeto que unia os dois amigos, mas que não foi suficiente para superar sentimentos como a inveja e o despeito.

Henrik fala da importância da intenção, do fato de nossos maiores erros e acertos estarem ancorados nos desejos que, muitas vezes, mantemos escondidos debaixo de capas e mais capas de civilidade, esquecendo que “uma pessoa não peca com aquilo que faz, mas com a intenção, com a qual comete isto ou aquilo”. “Intenção é tudo”, diz Henrik à Kónrad. As ações, ou seja, tudo aquilo que fazemos também reflete o nosso interior. Fugimos ou enfrentamos a realidade? Reconhecemos que erramos ou jogamos a culpa nos outros? Henrik deixa claro que uma “pessoa sempre responde com a sua vida inteira às perguntas mais importantes” e que no fim são os episódios da sua vida que respondem “às perguntas que o mundo lhe dirigiu com tanta insistência”.

Margarete Hülsendeger é Física e Mestre em Educação em Ciências e Matemática/PUCRS. É mestra e doutoranda em Teoria Literária na PUC-RS. margacenteno@gmail.com

Em As velas ardem até o fim não vamos encontrar respostas para as questões mais profundas da existência humana, portanto, não pense em lê-lo como se fosse um manual do bem viver. E a razão para isso é simples: essas respostas não existem. No entanto, vamos encontrar muito espaço para reflexão. Um espaço para discutir não só o amor e a traição, mas a raiva, a inveja, a vaidade, o egoísmo e a vingança, pois essas são paixões que se ocultam “de tal modo na noite da alma humana, como o puma, o abutre e o chacal no deserto da noite do Oriente”. Sándor Márai, na voz de seu narrador Henrik, deixa claro que para a paixão não importa o que se recebe do outro, ela deseja apenas “exprimir-se por inteiro, quer transmitir a sua vontade, mesmo que não receba em troca mais do que sentimentos ternos, cortesia, amizade e paciência”.

Duas perguntas são feitas e as duas são respondidas, mesmo que um dos amigos não tenha compreendido o que estava por detrás delas. Quando o livro termina, a amizade não é retomada, porque muito tempo já havia passado e nada mais podia ser feito. Entretanto, algo mais importante ocorre: o início do perdão. Um perdão que se manifesta no desejo de um quadro que há muito tempo foi retirado da parede volte ao seu lugar.

Se você quiser saber quais os segredos dessa história e todos os detalhes que propositadamente deixe de dizer só há um caminho, ler. Leia e descubra porque esse romance é considerado, não só o melhor livro de Sándor Márai, mas uma verdadeira obra prima.

[1] No Brasil ele foi lançado em 1999, pela Companhia das Letras, com o título As brasas. Estou usando o título com o qual foi publicado em Portugal por achá-lo mais de acordo com o texto, além de ter sido a versão que eu li.

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