Direitos Humanos

Uma história sobre Direitos Humanos

Marina Nogueira Madruga*

 

Resumo:

Este artigo apresenta abreviadas notas quanto a obra A invenção dos direitos humanos, de Lynn Hunt.

Palavras-chave: Direitos Humanos. Empatia. Solidariedade

Abstract:

This article presents brief notes on a work An Invention of Two Human Rights, Lynn Hunt.

Key words: Human rights. Empathy. Solidarity

A obra A invenção dos direitos humanos – Uma História, de Lynn Hunt, expõe o aparecimento dos direitos humanos por meio de uma conscientização e transformação das pessoas, com consequente modificação no pensamento, na sociedade, na cultura e na política.

A característica especial do texto é a importância dada pela autora à literatura romancista, com natural surgimento da auto evidência, que encadeou o nascimento dos direitos humanos e instigou seus debates. O assunto é abordado através de cinco capítulos: 1. “TORRENTES DE EMOÇÕES” Lendo romances e imaginando a igualdade; 2. “OSSOS DOS SEUS OSSOS” Abolindo a tortura; 3. “ELES DERAM UM GRANDE EXEMPLO” Declarando os direitos; 4. “ISSO NÃO TERMINARÁ NUNCA” As consequências das declarações e 5. “A FORÇA MALEÁVEL DA HUMANIDADE” Porque os direitos humanos fracassaram a princípio, mas tiveram sucesso no longo prazo.

A primeira frase: “Às vezes grandes textos surgem da reescrita sob pressão” (p. 13) faz alusão à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, a qual foi adotada em passo acelerado em razão da Revolução Francesa. Para a autora, esse documento impulsionou a opinião sobre direitos humanos no mundo, que passaram a ser vistos como universais.

Pela leitura, questiona-se como se cristalizou a afirmação dos direitos humanos no final do século XVIII, logo percebendo que o ponto da auto evidencia é conclusiva para demonstrar sua história. Lynn confessa

Acredito que a mudança social e política — nesse caso, os direitos humanos — ocorre porque muitos indivíduos tiveram experiências semelhantes, não porque todos habitassem o mesmo contexto social, mas porque, por meio de suas interações entre si e com suas leituras e visões, eles realmente criaram um novo contexto social. Em suma, estou insistindo que qualquer relato de mudança histórica deve no fim das contas explicar a alteração das mentes individuais. Para que os direitos humanos se tornassem autoevidentes, as pessoas comuns precisaram ter novas compreensões que nasceram de novos tipos de sentimentos. (p. 33)

A partir de 1750, grande impacto cultural foi causado pela literatura de romances epistolares, como Julia, Pamela e Clarissa, todos escritos por homens, cujas heroínas eram jovens mulheres. Mulheres com poucos direitos sem pais ou maridos, que sofriam restrições e buscavam autonomia, que demonstravam muita força de vontade e personalidade, além do desejo de independência. Como resultado, os leitores sentiram empatia por quem lhe era próximo e também seus semelhantes, pois se identificaram com os personagens comuns das obras, assemelhando-se a pelos mesmos sentimentos íntimos e pelo anseio de autonomia.

Hunt relaciona romances e empatia

Romances como Júlia levavam os leitores a se identificar com personagens comuns, que lhes eram por definição pessoalmente desconhecidos. Os leitores sentiam empatia pelos personagens, especialmente pela heroína ou pelo herói, graças aos mecanismos da própria forma narrativa. Por meio da troca fictícia de cartas, em outras palavras, os romances epistolares ensinavam a seus leitores nada menos que uma nova psicologia e nesse processo estabeleciam os fundamentos para uma nova ordem política e social. (p. 38)

O surgimento desse tipo de escrita coincide com o nascimento dos direitos humanos. Com o tempo, mais pessoas tiveram acesso a essas histórias que tratavam do cotidiano e de problemas comuns, com intensidades emocionais, ocasião em que ascendeu a questão sobre direitos humanos e floresceu o olhar para o semelhante. Apoiados na capacidade de sentir empatia, pelas leituras de romances, e assistir torturas judiciais e punições corporais em praças públicas, surgiram novos pensamentos sobre a reação dos corpos e individualidade, além de outros conceitos sobre organização social e vida política, fundamentados em sentimentos de solidariedade, sensibilidade, compaixão, identificação psicológica, companheirismo. A autora revela

No século xviii, os leitores de romances aprenderam a estender o seu alcance de empatia. Ao ler, eles sentiam empatia além de fronteiras sociais tradicionais entre os nobres e os plebeus, os senhores e os criados, os homens e as mulheres, talvez até entre 39 os adultos e as crianças. Em consequência, passavam a ver os outros —indivíduo s que não conheciam pessoalmente—como seus semelhantes, tendo os mesmo s tipos de emoções internas. Sem esse processo de aprendizado, a “igualdade” talvez não tivesse um significado profundo e, em particular, nenhuma consequência política. (p. 39)

Ao tratar da tortura, relaciona a primeira vez em que a expressão “direitos do homem” foi usada, em 1762, por Rousseau, com a condenação, no mesmo período, na França, de Jean Calas, criticando o sistema criminal da época. A obra apresenta brevemente o caso Calas: executado em público, por meio do suplício de roda e tortura judicial preliminar para confissão, foi incriminado por assassinar seu filho (suicídio) por intolerância religiosa. Voltaire no “(…) seu Tratado sobre a tolerância por ocasião da morte de Jean Calas, no qual ele usou pela primeira vez a expressão “direito humano”; o ponto principal de seu argumento era que a intolerância não podia ser um direito humano (ele não propunha o argumento positivo de que a liberdade de religião era um direito humano.” (p. 73)  Lynn explica que

Nos seus textos iniciais sobre Calas, em 1762-3, Voltaire não usou nem uma única vez o termo geral “tortura ” (empregando em seu lugar o eufemismo legal “a questão”). Ele denunciou a tortura judicial pela primeira vez em 1766 e depois estabeleceu frequentemente a ligação entre Calas e a tortura. A compaixão natural leva todo mundo a detestar a crueldade da tortura judicial, insistia Voltaire. (p. 75)

Assim como os direitos humanos, as novas atitudes também se cristalizaram na época, buscando punição mais compassiva, por meio de campanhas para abolição da tortura estatal e mudança nos castigos.

Em seguida, fazer referência a obra “Dos delitos e das penas”, de Beccaria, em 1764, o qual propunha um padrão democrático de justiça e o fim da pena de morte, com moderação nos castigos (proporcional ao crime), embora ainda públicos, para transparência da lei. Nesse período os juízes não renunciaram totalmente a tortura, mas em 1770 a 1780 as campanhas ganharam força e buscaram prudência nos castigos, visando a reforma penal.

O fim da tortura se deu pela substituição da estrutura tradicional de dor por uma inovação, onde os indivíduos eram donos de seus corpos e tinham direitos relativos a individualidade e inviolabilidade, reconhecendo nos outros as mesmas paixões, sentimentos e simpatia que viam em si.

Nesse sentido, finaliza o capítulo

Talvez pareça um tanto exagerado estabelecer uma ligação entre assoar o nariz com um lenço, escutar música, ler um romance ou encomendar um retrato e a abolição da tortura e a moderação do castigo cruel. Mas a tortura legalmente sancionada não terminou apenas porque os juízes desistiram desse expediente, ou porque os escritores do Iluminismo finalmente se opuseram a ela. A tortura terminou porque a estrutura tradicional da dor e da pessoa se desmantelou e foi substituída pouco a pouco por uma nova estrutura, na qual os indivíduos eram donos de seus corpos, tinham direitos relativos à individualidade e à inviolabilidade desses corpos, e reconheciam em outras pessoas as mesmas paixões, sentimentos e simpatias que viam em si mesmos. (p. 111-2)

Hunt, ao seguir a obra, questiona: “Por que os direitos devem ser apresentados numa declaração? Por que os países e os cidadãos sentem a necessidade dessa afirmação formal?” (p. 113) e em seguida conclui

As campanhas para abolir a tortura e o castigo cruel apontam para uma resposta: uma afirmação formal e pública confirma as mudanças que ocorreram nas atitudes subjacentes. Mas as declarações de direitos em 1776 e 1789 foram ainda mais longe. Mais do que assinalar transformações nas atitudes e expectativas gerais, elas ajudaram a tornar efetiva uma transferência de soberania, de Jorge 111 e o Parlamento britânico para uma nova república no caso americano e de uma monarquia que reivindicava uma autoridade suprema para uma nação e seus representantes no caso francês. Em 1776 e 1789, as declarações abriram panorama s políticos inteiramente novos. As campanha s contra a tortura e o castigo cruel seriam fundidas, a partir de então, com toda uma legião de outras causas de direitos humanos, cuja relevância só se tornou clara depois que as declarações foram feitas. (p. 114)

Em 1789 sobreveio a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que atraiu atenção internacional e serviu de empurrão para os direitos humanos no mundo. Ao tratar de direitos gerais de justiça, embora nenhum dos artigos verse sobre grupos particulares, e a declaração não resolva todas as questões, trouxe maior urgência para discutir quem não tinha propriedade; falar sobre minorias religiosas; escravos, mulheres. Nesse sentido

(…) declaravam que todos os homens “nascem e permanecem livres e iguais em direitos” (artigo I a). Entre os “direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem” estavam a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão (artigo 2a). Concretamente, isso significava que quaisquer limites aos direitos tinham de ser estabelecidos na lei (artigo 4a). “Todos os cidadãos” tinham o direito de participar na formação da lei, que deveria ser a mesma para todos (artigo 6f i), e consentir na tributação (artigo 14), que deveria ser dividida igualmente segundo a capacidade de pagar (artigo 13). Além disso, a declaração proibia “ordens arbitrárias” (artigo 7°), punições desnecessárias (artigo 8fl) e qualquer presunção legal de culpa (artigo 9S) ou apropriação governamental desnecessária da propriedade (artigo 17). Em termos um tanto vagos, insistia que “[n]inguém deve ser molestado por suas opiniões, mesmo as religiosas” (artigo 10), enquanto afirmava com mais vigor a liberdade de imprensa (artigo 11). (p. 131 -2)

Logo, para a escritora: “Esses atos de declarar tinham ao mesmo tempo um ar retrógrado e avançado. Em cada caso, os declarantes afirmavam estar confirmando direitos que já existiam e eram inquestionáveis. Mas ao fazê-lo efetuavam uma revolução na soberania e criavam uma base inteiramente nova para o governo.” (p. 116)

Com a declaração, os universalistas defendiam e invocavam os “direitos do homem”, no entanto, os federalistas viam o termo como ameaça às autoridades e “excesso democrático”. A partir desse debate, disseminou-se a linguagem dos direitos humanos pelo mundo, além de novas discussões sobre religião, política e direito. Hunt assegura: “Como consequência, o emprego da linguagem dos direitos aumentou dramaticamente depois de 1789. As evidências dessa onda podem ser prontamente encontradas no número de títulos em inglês que usam a palavra “direitos”: ele quadruplicou na década de 1790 (418) em comparação com a de 1780 (95) ou com qualquer década anterior durante o século xvni.” (p. 135)

A obra pretendeu também explicar a lógica interna dos direitos humanos, desde sua invenção, a qual, pela teoria (declaração) mais a prática (revolta e rebelião) resultam em forçar a mão dos legisladores para garantir direitos. Assegura: “A noção dos “direitos do homem”, como a própria revolução, abriu um espaço imprevisível para discussão, conflito e mudança. A promessa daqueles direitos pode ser negada, suprimida ou simplesmente continuar não cumprida, mas não morre.” (p. 176), fazendo alusão ao processo que continuamos na contemporaneidade.

A conclusão de Lynn é de que “os direitos humanos ainda precisam ser resgatados.” (p. 210) Isso pois, há inúmeras reuniões que visam abolir o genocídio, a escravidão e a tortura, outras, para proteger mulheres, crianças e minorias. Ao final, questiona: “Os direitos humanos nos desapontaram por se mostrarem inadequados para a sua tarefa?” (p. 221) respondendo

Um paradoxo entre distância e proximidade está em ação nos tempos modernos. Por um lado, a difusão da capacidade de ler e escrever e o desenvolvimento de romances, jornais, rádio, filmes, televisão e internet tornaram possível que mais e mais pessoas sintam empatia por aqueles que vivem em lugares distantes e em circunstâncias muito diferentes (…) Assim, embora as formas moderna s de comunicação tenham expandido os meios de sentir empatia pelos outros, elas não têm sido capazes de assegurar que os homens ajam com base nesse sentimento de camaradagem. A ambivalência quanto à força da empatia pode ser encontrada do século xvin em diante, tendo sido expressa até por aqueles que empreenderam explicar a sua operação (p. 222)

Por fim, arremata: “O processo tinha e tem em si uma inegável circularidade: conhecemos o significado dos direitos humano s porque nos afligimos quando são violados. As verdades dos direitos humano s talvez sejam paradoxais nesse sentido, mas apesar disso ainda são autoevidentes.” (p. 216)

A obra cumpriu todas as suas propostas iniciais e manteve o foco em apresentar a história dos direitos humanos, de sua invenção, até a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). A autora demonstrou a acentuada necessidade de lutarmos pela efetivação de direitos humanos, além de assessorarmos para que a justiça social seja enraizada. Como contribuição, demonstra a importância da conscientização e instrução social, através da leitura, para uma assimilação psicológica de um processo de “aprendizagem igualdade”, em que possa ver o outro como “eu”, e ser capaz de reproduzir sentimentos de compaixão, empatia, solidariedade e respeito, em busca da positivação da dignidade humana.

REFERÊNCIA DE TEXTO

HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

*Advogada. Pós-graduada em Direito Constitucional e Direito Processual Penal pela Faculdade Damásio.

 

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