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Transgressão e minoria na literatura: linguagem como RESISTÊNCIA

Transgressão e minoria na literatura: linguagem como RESISTÊNCIA

TRANSGRESSION AND “MINOR” IN LITERATURE: LANGUAGE AS RESISTANCE

 

 

MARTINS, Ronie Von Rosa é m mestre em Educação – IFSUL/Pel; pós-graduado em Literatura Contemporânea Brasileira –UFPEL; Especialista em Linguagens Verbais e Visuais – IFSUL/PE

Ronie Von Rosa Martins[*]

Resumo:

Esse texto percorre uma linha de pensamento que se alia aos estudos de Foucaul na década de sessenta sobre a literatura e também com o conceito de Literatura menor criado por Gilles Deleuze e Félix Guatarri na obra escrita sobre o escritor Kafka em 1975. Essa aliança é compreendida no artigo como vetor de potência para pensar uma outra forma de nos relacionarmos com a produção de conhecimento.

Palavras-chaves: Literatura menor, transgressão, Educação

This text follows a line of thought that allies with Foucaul’s studies in the sixties on literature and also with the concept of minor Literature created by Gilles Deleuze and Félix Guatarri in the work written about the writer Kafka in 1975. This alliance is understood in the article as a vector of power to think of another way of relating to the production of knowledge.

Keywords: minor literature, transgression, education

 

INTRODUÇÃO

Esse texto percorre uma linha de pensamento que se alia aos estudos de Foucaul na década de sessenta sobre a literatura e também com o conceito de Literatura menor criado por Gilles Deleuze e Félix Guatarri na obra escrita sobre o escritor Kafka em 1975. Essa aliança é compreendida no artigo como vetor de potência. Capaz de priorizar um pensamento que se apropria de  forças e multiplicidades advindas de experiência intensas com a linguagem e a literatura, e que tensionam e confrontam uma forma de saber , uma forma de  conhecimento e suas  formas de expressão.

Nos aproximamos de duas formas muito singulares de pensar a Literatura engendradas pelos autores já referidos, mas que trazem em sí uma potência de inconformidade, rebeldia e ousadia capazes de nos fazer repensar sobre os limites de um “possível” para a linguagem. E mais do que isso, nos faz reflfetir sobre  como estas relações produzidas entre estas experiência de linguagem literária e os sujeitos podem produzir uma subjetividade que resista às imposições e aos limites já pré-definidos também para a Educação.

Quando Foucault percebe uma experiência de escrita transgressora, e Deleuze e Guattari formulam o conceito de uma literatura que se desgruda de outra que seria a oficial, maior,- e faz toda a estrutura dessa literatura maior oscilar através dos fluxos menores de uma linguagem que resiste política e coletivamente a uma estrutura régia da linguagem,- eles nos convidam a pensar intensamente e intempestivamente contra um pensamento dogmático que também se apossa da forma de ver e entender a escola.

Foucault e a transgressão da linguagem.

O que chama a atenção de Michel Foucault para a literatura na década de 60 é exatamente o espaço de possibilidade em tensionar o próprio pensamento que ela parece possuir.  Não em toda a literatura, mas naquela de um grupo específico de autores e pensadores.

Nesta época, Foucault se frustra com os caminhos que o pensamento contemporâneo toma, a filosofia, para o autor, estaria “desorientada”, andaria em círculos na tentativa desesperada de dar conta de uma ideia de pensamento e de subjetividade que moldavam um padrão de sujeito ao qual o autor era totalmente contrário. Presa em ideias universais, em buscas de verdades absolutas, o pensamento contemporâneo se cristalizava em um modelo de homem e em uma razão que mesmo sem querer assumiam a posição, agora vazia, de Deus. Entendamos aqui o conceito de morte de Deus cunhado por Nietzsche (2012) para além das implicações que uma leitura que centralize seu interesse em questões religiosas teriam, o que nos interessa nesse artigo é perceber essa morte, ou esse apagamento de Deus como uma espécie de desinteresse pelas questões que validavam e consolidavam uma ideia de verdade absoluta. Já não haveria, para o filósofo, aquele reconfortante ideal de que algo superior e verdadeiro estaria conduzindo nossas formas de pensar e ser.

A verdade não estaria mais alojada nas alturas inomináveis de uma transcendência, não haveria, portanto, agora, uma verdade única e universal, visto que essa ideia de poder centralizada e ditatorial já não existiria. Todas as paredes que sufocavam, apertavam e configuravam o homem prostrado diante da divindade de uma razão divina estariam em em ruínas.

É neste ponto que um pensamento filosófico que emerge mais especificamente dos anos 60, muito influenciados por Nietzsche começam a propor dilatações naquilo que viria após essa fatídica morte da razão como um universal.

O homem, em sua criação e produção, afogado por uma subjetividade que o prostrou diante da divindade, da verdade eterna, da razão absoluta, se encontra desorientado. Acostumado eternamente a girar em torno de uma luz que supostamente o redimiria de todos os pecados e injustiças, de uma luz que no fim lhe daria as explicações para todas as suas dores e aflições, uma luz que lhe dava significado sobre as coisas, se vê angustiado e temeroso ao perceber que já não a percebe mais.

A liberdade que deveria estar inerente a esse desaparecimento de uma essência, de uma verdade eterna e interior, acaba produzindo na carne e na mente desse homem o desejo incontrolável de substituir, simplesmente, a adoração por uma divindade deposta por outra. Há uma grande necessidade de prostração diante de algo transcendente.

E onde ele encontra todos esses valores divinos tão necessários para dar continuidade, mesmo que camuflada, a essa dependência cicatrizada no corpo e na mente? Na ideia de seu próprio pensamento como algo próprio e originário. Todas as forças que esta criatura voltava para uma fé capaz de protegê-lo e dar sentido ao que era, agora, se voltam para a razão, a razão do homem. Uma razão que camufla o sopro divino neste sujeito que busca assemelhar-se a própria divindade, universalidade e verdade que ajudara a depor.

De acordo com SEPE (2013) esse homem, ou essa produção subjetiva que surge na modernidade estaria definido basicamente por três categorias que definiriam e buscariam essa proximidade e semelhança com uma imagem de homem que ao invés de, na liberdade surgida, criar possibilidades muito diferentes e positivas de existência, acaba aproximando-se a um pensamento a um ideal dos universais e dos absolutos.

O autor dirá então que essa casca que configura o sujeito desde a modernidade é constituída por um conceito específico de autonomia, autenticidade e unidade. Segundo o autor, a autonomia produziria no homem uma ideia de que através de sua vontade o homem seria capaz de se autodeterminar através de suas próprias leis, e que, portanto ignoraria o que fosse exterior a esse mesmo homem. A autenticidade faria com que o homem buscasse uma espécie de estilo e individualidade aproximáveis de uma ideia de modelo, de padrão. Aquele que não fosse capaz de atingir essa condição estaria inegavelmente correndo o risco de uma vida inautêntica.

Sobre a última das categorias:

Por fim, temos na ideia de unidade um conceito que tem por função agir como princípio que assegure a síntese de toda representação. Essa unidade da apercepção garante não apenas que eu me reconheça de forma reflexiva como senhor de toda minha vida mental, como também está na base da coerência de uma personalidade unificada, capaz de compreender-se como um eu sempre presente no desdobrar temporal, momento a momento. (SEPE,2013)

Essa construção de sujeito, vai nos dizer o autor, estaria aliada a uma ideia teológica de Deus que nos faria suspeitar  desse humanismo por , talvez, perpetuar um projeto teológico-político que configura nossas formas de ser e pensar.

Seria, então, através da linguagem, mais especificamente de uma linguagem literária que flerta perigosamente com a transgressão, com a loucura e com a morte que Foucault encontraria um caminho para enfrentar e propor uma nova forma de pensar o homem e as possibilidades de resistir  a uma construção de sujeito incapaz de dar conta, ainda, das possibilidades da multiplicidade e da diferença.

Foucault entende que nessa literatura há uma potência positiva capaz de fazer que  esta diga o que a própria filosofia ainda não conseguia. A literatura transgressora de Artaud, Mallarmé, Russel e outros possibilitaria a Foucault a ferramenta para que ele pensasse o próprio pensamento através de tudo aquilo que foi de certa forma evitado pelo ato, mesmo, de pensar. Existiria para o filósofo uma espécie de murmúrio da linguagem que não estaria ainda capturado pelas estruturas gramaticais, linguísticas e sociais. Estes autores da transgressão, ou melhor dizendo, estes autores que se propunham a uma experiência da escrita literária como transgressão. Experiência de rebeldia da linguagem contra a própria linguagem. Estes abririam espaços, frinchas, brechas, buracos que permitiriam que esse murmúrio caótico da linguagem, que esse murmúrio disforme penetrasse nas estruturas da literatura e da linguagem. E também na filosofia como uma forma de a própria experiência trágica dessa linguagem – resistir á uma solidificação de um sujeito datado e como dito pelo autor com prazo de validade esgotado.

Essa escrita teria a condição de nos fazer perceber a diferença, nos colocaria em contato com as forças intempestivas capazes de uma produção  de subjetividade que por fim se livrasse do peso da verdade absoluta, da busca pela sentido único e escondido das coisas.

MACHADO (2000) comentando sobre a loucura como um dos limites transgressores  da literatura afirma que  a experiência literária é o jogo do limite e da transgressão, existente na experiência da loucura, aparece com mais vivacidade como possibilidade de contestação da cultura. Sobre a morte, citando Pierre Macherey, Machado (2000,p.84) nos diz que a literatura tal como foi praticada por  Roussel nos ensinaria a ver as coisas do ponto de vista da morte, nos ensinando dessa forma a morrer.

A experiência de uma linguagem transgressora, portanto, dentro da literatura poderia nos ensinar a morrer. Entenda-se aqui que essa morte nada mais é do que o apagamento de um sujeito cartesiano e de todas as estruturas capazes de manter essa construção subjetiva em pé. A morte do homem. Dessa ideia de homem que produz e também é criada por uma subjetividade encravada nos conceitos de um humanismo crítico tão confrontado por Foucault e outros pensadores da época.

Deleuze e Guattari:  Literatura Menor.

Também com forte influência de Nietzsche em sua obra, na década de setenta  Gilles Deleuze e o Psicólogo Féliz Guattari publicam um livro intitulado Kafka, por uma literatura menor, no qual definem a importância de um tipo de literatura como meio de resistir ao engessamento  do pensamento cultural que para os autores não permitiam que se pensasse  o ser humano para além das estruturas sociais e dominantes estipulavam. Também criticando uma produção subjetiva que sequestrava as possibilidades de um ato de pensar para além do eu cartesiano, e questionando e de certa forma fazendo uso das sínteses do inconsciente de Kant, que para os autores não conseguiam fugir do sujeito, pois eram propostas ativamente por ele, concebem o conceito de sínteses passivas do inconsciente (2010), e tecem toda sua filosofia com os encontros inusitados que fazem com várias outras áreas do conhecimento. Literatura, ciência, botânica, psicologia, cinema, arte…

Os autores usam a palavra passiva para seu conceito de síntese, justamente para diferenciar da ideia de Kant, para Kant, grosso modo, seria uma produção do próprio sujeito, já para os autores, o inconsciente não seria algo pensado ou não por um sujeito, mas tudo aquilo que efetuasse as condições para a construção e produção desse próprio sujeito. Tirando dessa forma a autoria ou o protagonismo do sujeito em relação à razão.

E é nesses atravessamentos, onde Deleuze e Guattari permitem que o pensamento  filosófico se embebede em outras áreas do conhecimento que produzem,  ou que inventam o conceito de uma literatura menor.

Segundo os autores:

As três características da literatura menor são de desterritorialização da língua, ramificação do individual no imediato-político, o agenciamento coletivo de enunciação. Vale dizer que “menor” não qualifica mais certas literaturas, mas as condições revolucionárias de toda literatura no seio daquela que chamamos de grande (ou estabelecida).(DELEUZE; GUATTARI, 1977, p.28)

Para Deleuze e Guattari as ditas literaturas “grandes” e estabelecidas não estariam interessadas nem um pouco em enfrentar a própria linguagem, não tinham pretensões de através do singular buscarem  um pensamento que dissesse mais do que a vida pessoal de personagens, suas dores, sentimentos e felicidades. Este tipo de escrita literária teria a ver com esse sujeito ao qual se deveria resistir.

O conceito de agenciamento coletivo de enunciação está no segundo volume da obra Mil Platôs (1995) escrita pelos autores quee nos dizem sobre como entendem um agenciamento; basicamente ele comportaria dois segmentos: conteúdo e expressão. Maquínico, pois agenciaria corpos, ações, paixões, misturas de corpos reagindo uns sobre os outros e Coletivo de enunciação, pois agenciaria os atos de enunciados, transformações incorpóreas atribuídas aos corpos, tudo isso em um eixo horizontal, e em um outro vertical os agenciamentos seriam compostos por um lado que os estabilizaria, um lado territorial ou reterritorizado e um outro com picos de desterritorializaçao capazes de os arrebatar. (1995,p.29)

A literatura que interessava tanto Deleuze quanto Guattari e que interessou Foucault  na década de sessenta era uma literatura capaz de se arriscar a transgredir o lugar comum e de conforto que a literatura e também o pensamento se encontravam. Portanto quando Deleuze e Guattari dizem menor, não o dizem com o conceito que a palavra carrega  para todos nós, o menor para os autores é a condição necessária para que a linguagem possa se inundar com  tudo o que a linguagem havia excluído da própria linguagem.

Sobre escrever intempestivamente:

O problema de escrever: o escritor, como diz Proust, inventa na língua uma nova língua, uma língua de algum modo estrangeira. Ele traz a luz novas potências gramaticais ou sintáticas. Arrasta a língua para fora de seus sulcos costumeiros, leva-a a delirar. Mas o problema de escrever é também inseparável de um problema de ver e ouvir; com efeito, quando se cria uma outra língua no interior da língua, a linguagem inteira tende para um limite ‘assintático’, ‘agramatical”, ou que se comunica com seu próprio fora. (DELEUZE, 1997, p.9)

Ver e ouvir. O fora. Os autores não estão falando de um outro lugar que deveríamos encontrar. Este fora não tem a ver com “outra coisa”, um o outro mundo, mas sim com a possibilidade intensa e arriscada de ver e ouvir para além da carapaça que nos configura como esse sujeito que somos. Ver e ouvir os murmúrios de uma linguagem indizível, de uma imagem fora da representação da coisa.

O imperialismo da linguagem está aliado, faz parte de uma construção subjetiva desse sujeito que só sabe dizer eu.

Deleuze citando Becket (1997) dizia que este falava em abrir buracos na linguagem para ver o ouvir o que está escondido atrás. Não para descobrir uma verdade absoluta e eterna, mas para fazer a linguagem ser preenchida por estes murmúrios, por estas novas formas de ver.

De acordo com (BARTHES, 2004, p.14)  assim que a língua é proferida, mesmo que na intimidade mais profunda do sujeito, a língua entraria  a serviço de algum tipo de poder.

Para Barthes a linguagem traria juntamente duas condições ao sujeito. Uma de escravo e a outra de mestre. O sujeito não se contentaria em repetir o que seria dito, e sossegado, nesse estado servil de apenas repetir se alojar confortavelmente. Ele afirmaria e assentaria tudo o que dissesse. (BARTHES, 2004, p15)

Uma literatura menor, ou uma experiência de escrita transgressora buscam exatamente confrontar essa lógica que nos faz, por repetirmos a exaustão o que ouvirmos, achar que estamos pensando ‘originalmente’ o que dizemos.

Alguns escritores correram o risco de escutar e ouvir o que ainda não estava organizado, arranjado, estipulado, afirmado e aceito, pensaram para além das possibilidades inventadas por uma subjetividade que grita um eu ensurdecedor em nossos ouvidos. Que nos embriaga na nossa própria razão e que não nos permite ver e ouvir para além de nossas organizações.

É no limiar da experiência da loucura, da morte, da transgressão que estes autores deram voz ao indizível, nos fizeram ver para além da representação.

Do mesmo modo que o pensamento intempestivo de Deleuze e Guattari  decide enfrentar o platonismo na filosofia,  a psicanálise como estrutura edipianizadora de sujeito, também  percebem que a linguagem naquele momento, e mais ainda agora, estava sendo colocada em um pedestal, e que tudo que fugia a uma organização dessa linguagem acabava sendo posta de lado e considerado não-verdadeiro, errado ou falso. Essa imagem da linguagem seria representada pela árvore, com suas hierarquias, suas regras, seus modelos arborescentes incapazes de permitir outras formas que não fossem aquela..

Para rebater, contrapor essa ideia arborescente, tanto na filosofia, na psicanálise e agora na literatura ou na linguagem, os autores propõem, ou fazem uso do conceito de rizoma da botânica, para darem conta de como entendem o pensamento.

Rizoma:

Qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo. É muito diferente da árvore ou da raiz que fixam um ponto, uma ordem. A árvore linguística á maneira de Chomsky começa ainda num ponto S e procede por dicotomia. Num rizoma, ao contrário, cada traço não remete necessariamente a um traço linguístico: cadeias semióticas de toda natureza são aí conectadas a modos de codificação muito diversos, cadeias biológicas, políticas, econômicas, etc., colocando em jogo não somente regimes de signos diferentes, mas também estatutos de coisas. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.15)

Seria contra essa ideia de uma linguagem com poder de regulamentar ou até mesmo produzir o real que se opõem os estudos de Deleuze e Guattari. Para os autores existiria um imperialismo da linguagem que determinaria blocos estruturais capazes de impedir que se ouvisse e visse para além dessa organização. Os pensadores que comungavam desse ponto de vista, se questionavam e buscavam entender as forças que engendravam as estratégias de poder da linguagem. Para escapar desse imperialismo, dessa formatação do sujeito, era preciso pensar em como estas estruturas de poder eram forjadas e em como elas produziam subjetividades.

No entanto, devemos entender que esse pensamento que se ergue desde os anos sessenta, não tinha em mente uma espécie de não-linguagem. Não se acreditava em uma destruição ou aniquilação da linguagem, pelo contrário, o objetivo era pensar intempestivamente a linguagem dentro da própria linguagem. Dobrar essa linguagem, fazer rizoma na linguagem, questionando uma certa moral da linguagem que sustenta narrativas que acabariam identificando, regulando, representado tudo aquilo que já está dado e instituído, não considerando  aquilo que é estranho e diferente a essas identificações

Através de uma literatura menor, e no agenciamento com uma linguagem rizomática, Deleuze e Guatarri entendem que o escritor pode ser considerado um clínico da civilização:

Por isso o escritor, enquanto tal, não é doente, mas antes médico, médico de si próprio e do mundo. O mundo é o conjunto dos sintomas cuja doença se confunde com o homem. A literatura aparece, então, como um empreendimento de saúde: não que o escritor tenha forçosamente uma saúde de ferro (haveria aqui a mesma ambiguidade que no atletismo), mas ele goza de uma frágil saúde irresistível que provem do fato de ter visto e ouvido coisas demasiado grandes para ele, fortes demais, irrespiráveis, cuja passagem o esgota, dando-lhe contudo devires que uma gorda saúde dominante  tornaria impossíveis. (DELEUZE, 1997. P.14)

De acordo com os autores, uma literatura menor estaria caracterizada primeiro por uma forte desterritorialização da própria língua, uma segunda característica é que esse tipo de literatura é sempre político e por fim que tudo nessa literatura adquire um valor coletivo. (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p.26,27)

Escola dogmática e escola intempestiva

Começamos a pensar a escola que se beneficiaria desses atravessamentos trágicos, intempestivos, potentes que Foucault, Deleuze e Guattari percebem na escrita, pensando inicialmente, mas não em uma classificação de importância, a própria criança, ou o estudante, esse sujeito que tem seu corpo encarcerado, ou por paredes físicas ou paredes virtuais muito comum  hoje em dia. A tecnologia parece ter produzido suas próprias e sufocantes paredes. Obviamente a instituição escola é prenha de vários outros sujeitos classificados, organizados e cumpridores de seus rituais institucionais. Rituais  que tem como objetivo definir e identificar o lugar de cada um na estrutura escolar e social, e que subjetivamente produz forças que buscam unicamente “igualar” estes sujeitos ao que a sociedade pre-configura como o ideal para eles.

Daniel Lins, doutor em filosofia e psicanalista, grande pesquisador da obra de Deleuze, em artigo intitulado “Mangue’s School ou por uma Pedagogia Risomática, aliando-se ao pensamento de Deleuze e Guattari vai dizer sobre a criança:

Para Deleuze e Guattari, as crianças são acontecimentos. Devir, acontecimento. As crianças são dissidentes de uma decalque traçado para elas, muitas vezes exterior aos seus desejos, o que as motiva a resistir a modelos pedagógicos, embora “legítimos”, ancorados, contudo, na pedagogia voltada para o futuro, atrelada à tentação permanente que atravessa a história dos homens e assimila com obstinação parentesco e causalidade, sob o signo de uma ciência régia que se erige em supostos modelos estáveis.(LINS, 2005. p 1230)

Aliado ao que Daniel Lins nos apresenta, entendemos que a Escola como uma produção discursiva, que elabora e molda um sujeito de acordo com os interesses de uma subjetividade que não permite considerar a diferença como elemento necessário para se pensar fora dos muros da significação e da representação, corta, tolhe os diferentes feixes de intensidade vital destes sujeitos. Decalcando-os, aqueles que não se adaptam às regras , ritos, verdades universais ali repetidas, editadas e disseminadas acabam sendo abandonados pelo “saber” escolar.

Para melhor compreendermos a ideia de uma criança-acontecimento, ou um aluno-acontecimento, proposto por Daniel Lins, faremos uso das palavras de Marcos Villela Pereira do seu livro “Estética da Professoralidade, um estudo crítico sobre a formação do professor” no qual dissertando sobre a identidade e a diferença na formação do professor, aliando-se a Foucault, Deleuze e Guattari descreve o que seria um acontecimento:

Acontecimento, aqui, significa uma relação de forças, um jogo agonístico de forças que se afetam mutuamente. Essas afecções, de um lado, resultam da colocação em cena de diferente feixes de intensidade vital, isto é, estar vivo significa emitir, emanar forças sobre o ambiente e sobre os outros sujeitos; significa suscitar e expor-se a emanações vindas desses sujeitos e ambiente; significa reagir a essas emanações, de modo ativo ou resistente. (PEREIRA, 2016, p.35,36)

A escola, da forma que a entendemos, busca fazer cortes, ajustes, modelagens nesses feixes de intensidade vital que habitam, que são o próprio sujeito/criança/aluno. A escola parece que, ao ter que escolher entre um sujeito intempestivo, intenso, vivo e potente, capaz de nestes fluxos de intensidade que o habitam  se relacionar com o conhecimento através da criatividade, da alegria, da curiosidade e das descobertas que faria com suas experimentações  transgressoras do próprio conhecimento, escolhe por aquele que repete os dogmas, regras e imagem de um sistema que o determina, define, justifica, julga e inclusive condena.

Sibilia (2012.p13) irá dizer que os problemas da escola, vistos por uma perspectiva historiográfica ganham um contorno de  tecnologia, a escola seria uma espécie de ferramenta constituída para produzir algo. Esse algo seria o próprio aluno, mas que com o passar dos anos acaba se tornando incompatível com os corpos e as subjetividades das crianças..

Seguimos com a autora quando esta pensa a educação formal.

É que a educação formal constituiu um importante braço armado do iluminismo: além de desenvolver seus ímpetos modernizantes e secularizadores, libertando o soberano das trevas da ignorância, também acabou sendo um forte movimento de uniformização cultural, capaz de desqualificar e asfixiar sob sua hegemonia racionalista todas as (muitas) manifestações consideradas inferiores.(SIBILIA,2012, p.21)

A educação formal “acabou sendo um forte movimento de uniformização cultural, capaz de  desqualificar e asfixiar sob sua hegemonia racionalista todas as muitas manifestações consideradas inferiores.”

O argumento deste texto percorre uma linha contrária a essa, uma linha de fuga como diria Deleuze e Guattari.(1998).

Para além da comunicação como a representação do mesmo e objeto de uso por um sujeito que a define, resume e significa, entendemos os estudos traçados por Foucault na década de sessenta aliado ao conceito de uma literatura menor de Deleuze e Guattari como uma espécie de chave, não para uma porta que libertaria a razão de seu confinamento, não há uma liberdade geral, estaríamos caindo novamente em um universal. A verdade final, alcançar a verdade, descobrir  o sentido final da verdade. Longe disso. Acreditamos na realidade como campo de experiência, de experimentação. Os autores aqui tratados se debruçaram sobre uma possibilidade real, e dobraram um “impossível” definido pelo humanismo afim de na própria linguagem buscar caminhos diferentes para dar conta, tanto da linguagem como também com as formas do sujeito se relacionar com a língua, a comunicação e com sigo mesmo, formas de entender e produzir subjetividade.

Se nos apropriarmos  dessa ousadia encontrada na linguagem literária de alguns escritores estudados pelos autores, pensamos ser possível esfarelar essa produção de forças que evita e desconsidera a vastidão de coisas e relações intensas que existem  afastadas da calcificação do sujeito contemporâneo e que é produzido em massa nas cadeiras escolares.

há um murmúrio longe da linguagem instituída que também diz, há forças de diferença e multiplicidade impregnando as formas de existência do ser humano, mas que são excluídas e negadas. Há outro pensamento que perambula longe de uma razão “inventada” para um sujeito também inventado.

Mas o que o artigo intenta reforçar, não é a transgressão trágica da vida real de algum desses autores, entendemos a transgressão aqui como um espaço para a experimentação potente e criativa dos devires.  Aliamos-nos com esse artigo aos pensadores que buscam avizinhar da Educação esse pensamento nômade e intempestivo que enfrenta as estatizações da razão mesmo fugindo, mesmo se esquivando e nestas fugas esburacando o alicerce de estruturas seculares da representação e do mesmo.

Segundo(GALLO, 2002, p.) se na literatura a primeira característica de uma literatura menor é a desterritorialização,  para uma educação que se quisesse menor, deveríamos  pensar uma desterritorialização dos processos educativos, o autor vai nos dizer que toda a estrutura de uma educação maior estaria sempre dizendo o que ensinar, como ensinar, para quem ensinar e porque ensinar. A educação maior se configuraria como uma imensa máquina de controle, uma máquina de subjetivação.

A segunda característica é a ramificação política. Se toda educação é um ato político, no caso de uma educação menor isso é ainda mais evidente, por tratar-se de um empreendimento de revolta e de resistência. Uma educação menor evidencia a dupla face do agenciamento: agenciamento maquínico de desejo do educador militante e agenciamento coletivo de enunciação, na relação com os estudantes e com o contexto social. Esse duplo agenciamento produz possibilidades, potencializa os efeitos da militância. (GALLO, 2002, p. 175)

Não há como enfrentar os mecanismos de solidificação do pensamento, da razão, da educação sem nos investirmos politicamente como forças de resistência. Correndo, sim, todos os riscos advindos desse posicionamento. A vida intensa e intempestiva é  prenha de desejo e risco, para longe disso só o monótono efeito de repetir o mesmo.

Por fim, a terceira característica é o valor coletivo. Na educação menor todo ato adquire um valor coletivo. O educador-militante, ao escolher sua atuação na escola, estará escolhendo para si e para todos aqueles com os quais irá trabalhar. Na educação menor, não há a possibilidade de atos solitários, isolados; toda ação implicará em muitos indivíduos. Toda singularização será, ao mesmo tempo, singularização coletiva. (GALLO. 2002, 176)

Tudo estaria ligado, em relação. Todos os esforços decorrentes de atitudes potentes, intempestivas estariam inegavelmente implicados como sucessivos encontros com outras atitudes, reações, projetos, discursos, projetos… Tecendo dessa forma uma ação sempre coletiva, pois atravessaria outras forças, outras intensidades que se aliariam a esse movimento ondulante e coletivo.

Criticando a literatura francesa, Deleuze no livro Diálogos, juntamente com Claire Parnet (1998, p.50) basicamente resume a fascinação do moderno e contemporâneo por estruturas arborescentes.  o autor afirma que não sabemos furar, limar o muro. Que gostaríamos demais de raízes, das árvores, do cadastro, dos pontos de arborescência, das propriedades.

Aliamo-nos, com esse texto, a um pensamento que surge na década de 90, como muito bem salienta Silva (2014, p.59) que, potencializado pela temática da diferença se voltam contra uma teoria educacional quase exclusivamente debruçada sobre efeitos ideológicos provocados pelas teorias críticas dos anos 80 do mesmo século. Nosso texto convida para pensarmos a escola e suas possibilidades fortemente interessados em todas as forças que tensionam e produzem subjetividades tais como sexualidade, etnia, gênero, crenças religiosas, alteridade, saber e poder e identidade e diferença.

Entendemos a necessidade de pensar a educação e o ensino a partir da possibilidade de esburacar suas estruturas maiores, molares, assim como na linguagem uma experiência transgressora de escrita deu espaço ou procurou dar espaço aos murmúrios potentes de um povo ainda por vir.

Finalizamos nosso texto pensando com Daniel Lins (2005, p.1229): Os saberes como sabores não mudam a realidade dos homens, mas atribuem ao “incompreensível” uma realidade artística, criadora.

Considerações finais

Outras experiências criativas e intensivas poderiam ser citadas como propostas impulsionadoras para nos forçar a questionar um pensamento dogmático da escola. Mas se escolhemos um experimento trágico e menor de linguagem e literatura, é porque vemos nesse experimento – vivido e experimentado por vários autores e tão arduamente pensado e pesquisado por Foucault, Deleuze e Guattari – um importante aporte teórico capaz de contagiar com as forças e potências de seus devires, o que consideramos um processo pedagogizante de escola que não consegue ou não quer afastar-se de uma ideia de recognição.

Assim que interpreta seu objeto como realidade, o pensamento lhe consigna a priori a forma da identidade: homogeneidade e permanência. O objeto é submetido ao princípio da identidade para que ele possa ser conhecido, de modo que todo conhecimento já é um reconhecimento. O pensamento reconhece o que ele previamente identificou; ele dá a si próprio para pensar apenas aquilo que tenha passado de antemão pelo crivo do Mesmo. (ZOURABICHVILI, 2016, p.41)

 

Zourabichvili (2016, p.43) diz que essa ideia de que os problemas são sempre os mesmos, desde sempre, e que são praticamente um patrimônio comum que atravessa o tempo se deve a uma ideia humanista e piedosa. E por isso o pensamento, então, estaria sempre entre soluções divergentes e insatisfatórias.

Ao orbitar enfadonhamente o mesmo e evitando o risco de processos de aprendizagem e relações advindos de um pensamento capaz de se constituir nos encontros com a diferença, a escola acaba não priorizando a criatividade e a criação.

No capítulo III da obra Proust e os signos, Deleuze dissertando sobre o aprendizado vai dizer:

Passamos ao largo dos mais belos encontros, nos esquivando dos imperativos que deles emanam: ao aprofundamento dos encontros, preferimos a facilidade das recognições, e assim que experimentamos o prazer de uma impressão, como o esplendor de um signo, só sabemos dizer “ora, ora, ora”, o que vem a dar no mesmo que “bravo!, bravo!,bravo!”, expressões que manifestam nossa homenagem ao objeto. (DELEUZE, 2010. p.26)

Ao usarmos as experimentações com a linguagem de autores que ousaram transgredir as regras de uma língua régia, o fazemos para visibilizar uma outra alternativa para pensarmos o próprio fazer pedagógico. Pensar em uma escola que tenha na vida intensa e intempestiva sua matéria de formação e criação é imprescindível para que não percamos mais tempo com monótonos “ora,ora, ou bravo!, bravo!”

 

 

 

Referências Bibliográficas

CRUZ, Bruno Lorenzatto. A filosofia  Anti-Humanista de Michel  Foucault: Questões sobre História e Liberdade. PUC/tese. Rio de Janeiro. 2013.

BARTHES, Roland.  Aula. São Paulo. Cultrix. 2004

BLANCHOT, Maurice. O espaço Literário. Tradução : Álvaro Cabral. Rio de Janeiro. Rocco. 2011

DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. tradução : Peter Pál Pelbart.. São Paulo.  Editora 34. 1997.

DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. trd. Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de janeiro. Forense Universitária. 2010.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. KAFKA, Por uma Literatura Menor. trd.: Júlio Castañon Guimarães. Imago Editora LTDA. Rio de Janeiro. 1977.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs, Capitalismo e Esquizofrenia. v.4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo. Editora 34. 1997.

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MARTINS, Ronie Von Rosa

[*]Mestre em Educação – IFSUL/Pel

Pós-graduado em Literatura Contemporânea Brasileira –UFPEL

Especialista em Linguagens Verbais e Visuais – IFSUL/PEL

http://lattes.cnpq.br/7073747758096484

https://orcid.org/0000-0003-2153-5760

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