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MATERNIDADE I: DESEJO OU OBRIGAÇÃO?

Por Margarete Hülsendeger

Decidir ter um filho implica responsabilidades aumentadas em relação a ele. A mãe que sonha com o filho perfeito vai ter de pagar por isso.

Elisabeth Badinter

A filósofa, escritora e historiadora francesa Elisabeth Badinter é conhecida por sua defesa dos direitos das mulheres, em especial das trabalhadoras migrantes, na França. Em suas inúmeras publicações, entrevistas e palestras é possível perceber seu compromisso com o racionalismo e o universalismo dos ideais iluministas; compromisso que, diversas vezes, foi motivo de questionamentos e debates acalorados. Um dos temas que sempre suscita algum tipo de polêmica é a posição da autora sobre a maternidade, exposta com contundência no livro O conflito: a mulher e a mãe (2011)[1].

Para tratar desse assunto, Badinter volta aos anos 1970 para explicar que a partir dessa década abriu-se às mulheres uma diversidade de modos de vida que gerações anteriores não conheceram. Assim, com o advento dos anticoncepcionais, as mulheres passaram a ansiar por mais liberdade e, por consequência, por direitos iguais aos homens. No entanto, em seguida esse anseio revelou-se uma fonte de contradição, pois, se por um lado implicou um aumento de deveres, por outro, trouxe para o primeiro plano o desejo da realização pessoal. Como conciliar esses dois lados de suas vidas foi, e continua sendo, o principal desafio de milhares de mulheres.

Badinter observa que os avanços conquistados nas décadas de 1970 e 1980 foram seriamente comprometidos com a crise econômica dos anos 1990. Nesse período, um grande número de mulheres, sobretudo as mais vulneráveis, foram obrigadas a retomar os papéis de dona de casa e de mãe. As razões por detrás desse retorno forçado residem em duas ideias cristalizadas na mente de uma sociedade predominantemente patriarcal: (1ª) sempre se considera o desemprego do homem mais destruidor do que o da mulher e (2ª) a resistência de muitos homens em dividir as tarefas do lar e aceitar a igualdade de direitos. Como resultado, a crise econômica acabou gerando uma crise identitária: “se homens e mulheres podem assumir as mesmas funções e exercer os mesmos papéis o que resta de suas diferenças essenciais?”.

Para solucionar esse imbróglio, grupos conservadores entregaram-se à tentação de confiar à “velha e boa mãe natureza” formas de destruir as ambições “anormais” da geração anterior. Essa tentação, segundo Badinter, foi reforçada pelo reaparecimento de uma ideologia chamada naturalismo, responsável por pregar a volta a um modelo tradicional de família. Em relação à mulher isso significa assumir a maternidade como algo não só natural, mas esperado e, até mesmo, exigido. Contudo, como diz a escritora francesa, o desejo de ter filhos não é constante e nem universal. Algumas mulheres os querem, outras não os desejam mais e muitas nunca os quiseram; pois se há escolha, existe diversidade de opiniões e, portanto, não é mais possível falar-se em um instinto universal.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

São muitos os casos de mães que nem mesmo sabem porque querem crianças, daí o impulso de apelar para um instinto que se sobrepõe a tudo. Porém, quando uma mulher decide não ter filhos ela passa a ser vista, quase sempre, como uma aberração, provocando todo tipo de questionamento. É preciso uma vontade de ferro para não se importar com todas as pressões e até com uma certa estigmatização. E se as pressões surtem efeito e, mais tarde, a mulher reconhece que se enganou, que não foi feita para ser mãe, corre o risco de ser marcada como uma espécie de monstro irresponsável e insensível. Para Badinter, isso ocorre porque a sociedade ainda não está pronta para ouvir que “se existem pais felizes, existem outros ao mesmo tempo frustrados e amargos, que talvez devessem ter-se abstido”.

Em O conflito há uma reflexão importante sobre o desejo, ou não, de ser mãe. Por esse motivo, Elisabeth Badinter reitera que a maternidade é apenas mais um aspecto da identidade feminina, não sendo de forma alguma um fator determinante na realização do “eu feminino”. Além disso, ela recorda, repetidas vezes, que a divisão do trabalho entre cônjuges é, na maioria dos casos, desigual, recaindo sobre as mulheres as responsabilidades mais pesadas quando o assunto é o cuidado dos filhos. A velha ideologia naturalista, recentemente ressuscitada, não ofereceu, até o momento, soluções para esse quadro dissonante; ao contrário, tem tornado cada dia mais insuportáveis as exigências que recaem sobre as mães. Para frear essa tendência, o caminho apontado por Badinter é investir na divisão equitativa dos papéis parentais dando a mesma importância às funções exercidas por mães e pais. Se isso algum dia será uma realidade não sabemos, mas é preciso entender que estamos diante de uma guerra iniciada há muito tempo quando a mulher estava à mercê dos homens e gerar filhos não era um desejo, mas uma obrigação.


[1] BADINTER, Elisabeth. O conflito: a mulher e a mãe. Tradução de Véra Lucia dos Reis. Rio de Janeiro: Record, 2011 (Edição Kindle).

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