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Fim da escravidão e a luta contra o racismo no Brasil

Roger Lemos é professor de Sociologia do Colégio Presbiteriano Mackenzie — Brasília.

Victor Missiato, analista político, doutor em História Política e professor do Colégio Presbiteriano Mackenzie – Tamboré.

Racismo e escravidão costumam formar um eixo interpretativo que percorre diversas análises sociais do Brasil moderno. É muito comum associar intrinsecamente as causas do racismo com o passado escravocrata brasileiro. No entanto, o racismo é um tipo de pensamento violento muito mais contemporâneo comparado ao sistema de produção escravista. Longe de querer igualar a escravidão antiga à moderna, mas o escravismo é uma prática milenar na história, enquanto o racismo é produto de diversos movimentos sociais e culturais nascidos na modernidade, entre eles o nacionalismo exacerbado, o darwinismo social e as mutações conceituais presentes nos discursos civilizatórios. Todos esses movimentos foram desenvolvidos em sua integralidade no século XIX, quando os discursos abolicionistas se tornaram hegemônicos em quase todo o mundo e a escravidão praticamente se extinguiu nas Américas.
 

No Brasil, o fim da escravidão não veio acompanhado de um projeto político-cultural para extinguir o racismo de nossas práticas jurídicas, culturais e políticas. Pelo contrário, pois do ponto de vista jurídico, os processos sociais que têm conduzido a sociedade brasileira para o efetivo combate à discriminação tardaram a ocorrer. Como é sabido, a igualdade formal advinda do instituto da Lei 3.353/1888 (Lei Áurea) não legou à população afrodescendente os auspiciosos benefícios da inclusão social, visto que nenhuma outra forma de reparação histórica fora condicionada ao diploma legal. Assim, durante mais de um século, o racismo teve campo fértil para as mais aviltantes práticas nas relações sociais arraigadas no âmago da sociedade brasileira.
 

Com a intenção de corrigir as disparidades reinantes, somente seis décadas depois, em 1951, a chamada Lei Afonso Arinos (Lei 1.390/1951) tentou, sem sucesso, atenuar a prática social discriminatória, incluindo no rol das contravenções penais as condutas preconceituosas de raça ou cor. Vale lembrar, por exemplo, a classificação de “eufemismo” a ela atribuída por Abdias Nascimento, descrevendo como, na prática social, a Lei 1.390/51 conseguiu apenas “sofisticar” publicações em jornais que, para enquadrarem-se na norma jurídica, substituíram a expressão “não se aceitam pessoas de cor” por “pessoas de boa aparência” nos anúncios para contratação, fato que nem mesmo a revisão legal trazida pela Lei 7.437/85 conseguiu extirpar da prática social.
 

É no bojo do Poder Constituinte de 1988 que o enfrentamento social ao racismo se intensifica e o mito da democracia racial passa a ser questionado de forma mais efetiva. Tendo a participação destacada do então deputado Carlos Alberto Caó de Oliveira, o diploma constitucional brasileiro, pela primeira vez, faz constar o princípio da igualdade racial e conduz a posterior tipificação como crime para a prática do racismo. Conforme descrito no Inciso XLII do Artigo 5º, a CF/88 classifica como direito fundamental o princípio do direito humano. Assim, a Lei 7.716/89 (Lei Caó), sancionada na esteira da CF/88, torna-se a primeira lei no ordenamento pátrio que tipifica o racismo como crime.
 

Não obstante, a prática do racismo cria mecanismos de subterfúgio para driblar a legislação, fazendo transparecer aspectos daquilo que o atual ministro dos Direitos Humanos e Cidadania no Brasil, Silvio Almeida, descreve como “estrutural”. Exemplo disso é a Lei 9.459/97 que, no intuito de ampliar o rol de crimes resultantes de discriminação, acrescentou um parágrafo ao Artigo 140 (§ 3º) do Código Penal brasileiro, introduzindo a figura da injúria. Desde então, a grande maioria de crimes de racismo passaram a ser relatados nos inquéritos policiais como injúria grave, fundamentado na dificuldade em provar o ato de racismo. Visando corrigir tal prática, o atual governo sancionou a Lei 14.532/23, tipificando o crime de injúria racial como racismo. Espera-se com isso que as apurações criminais e o enfrentamento à conduta delituosa sejam facilitados.
 

Outro esforço criado para combater a prática do racismo e promover a reparação histórica é a Lei 12.288/10, que institui o Estatuto da Igualdade Racial. Na esteira do Estatuto, variada legislação passou a ratificar a política afirmativa das cotas raciais, não somente para o ingresso em universidades, como também em concursos públicos. Nesse sentido, a Lei das Cotas Raciais (Lei 12.711/12) merece especial atenção. Embora sendo alvo de vários questionamentos, o que culminou na arguição junto ao Supremo Tribunal Federal (ADPF 186), impetrada pelo partido Democratas, o pleno da Suprema Corte, em decisão histórica, declarou a constitucionalidade da referida lei que, atualmente, carece de apreciação para prorrogação junto ao Poder Legislativo, objeto do PL 3.061/22.
 

Ao tomarmos em princípio a dimensão do Direito como um processo histórico-dialético, fruto de diversos mecanismos de conservação e transgressão da sociedade civil moderna, ressaltamos que a luta histórica de diversos movimentos sociais e atores políticos na busca pelo fim da visão de mundo racista, ainda latente em uma mentalidade coletiva, vem contribuindo para que a liberdade assinada no dia 13 de maio de 1888 seja transformada em uma liberdade de fato, quando cidadania, trabalho, republicanismo e cultura democrática, enfim, estejam laureados nos corações e mentes do povo brasileiro.

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