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O MAIS CALUNIADO

A verdade é esta: os meus deuses não me pedem nenhuma religião. Pedem que eu esteja com eles. E depois de morrer que seja um deles.

Mia Couto

Por Margarete Hülsendeger

Em texto anterior apresentei algumas das diferenças e semelhanças entre o Candomblé e a Umbanda. Também mencionei o quanto essas duas religiões, de influência africana, são alvo de preconceitos e, por consequência, de intolerância religiosa. Essa situação, no entanto, não é nova. Desde o primeiro contato dos europeus com os povos da África muito foi dito e pouco se compreendeu de fato. Nesse contexto, os missionários cristãos tiveram sua parcela de culpa ao difundir informações falsas ou deturpadas sobre os cultos africanos com o único objetivo de atrair novos fieis e afastá-los, conforme alegavam, de práticas consideradas blasfemas e selvagens.

Talvez uma das figuras mais mal compreendidas e injustiçadas do panteão africano seja Exu. Quem melhor explicou a forma distorcida com que essa entidade foi, e ainda é, percebida pelos homens brancos e “civilizados” foi Pierre Verger (1902-1996). Ele escreveu que Exu “tem um caráter suscetível, violento, irascível, astucioso, grosseiro, vaidoso, indecente”, de maneira que “os primeiros missionários, espantados com tal conjunto, assimilaram-no ao Diabo e fizeram dele o símbolo de tudo o que é maldade, perversidade, abjeção e ódio, em oposição à bondade, pureza, elevação e amor de Deus”. O que esses missionários do passado e muitos missionários do presente nunca entenderam é que Exu desempenha o papel de mensageiro, semelhante aos anjos na tradição cristã, atuando como uma ponte entre o mundo dos homens e o dos Orixás. Dessa forma, na mitologia africana, Exu é aquele que tudo sabe, pois nada lhe é oculto; tudo ele ouve e tudo ele revela.

Contudo, de todas as suas características, a mais impactante é a sua energia transformadora, que lhe confere o poder de quebrar tradições, romper normas e promover mudanças. Quem sabe esse caráter rebelde ou pouco convencional seja a razão pela qual ele se tornou uma figura perigosa e, até mesmo, temida. Afinal, ao desconsiderar limites de qualquer natureza, ele desafia a maioria das convenções sociais que sustentam a ordem em uma sociedade. Existe perigo maior do que venerar uma divindade que não se submete a normas ou tradições estabelecidas? Para os missionários brancos, certamente, esse era um risco que preferiam evitar.

Quando os escravizados, provenientes do continente africano, chegaram ao Brasil, foi necessário adaptar-se, originando o que hoje se denomina sincretismo. No Candomblé, onde os rituais estão mais alinhados às tradições africanas, Exu é um Orixá, uma divindade que personifica fenômenos e energias da natureza. Ele não incorpora para oferecer consultas, mas mantém sua função de mensageiro, estabelecendo a ligação entre o mundo humano e o divino. Na Umbanda, por sua vez, é percebido como um espírito associado aos caminhos, tendo a capacidade de incorporar nos médiuns com o objetivo de auxiliar as pessoas em seu desenvolvimento. Assim, são entidades que atuam na vibração dos Orixás, descendo à terra para guiar e auxiliar, assim como fazem os caboclos, os pretos-velhos e as crianças.

No entanto, nas duas religiões, por muito tempo, o culto a Exu foi marginalizado. Seus rituais eram realizados em sessões quase secretas, durante noites fechadas ao público. Felizmente, essa realidade começou a mudar aos poucos, e o culto a Exu deixou de ser tão sigiloso. Ainda assim, como bem observou o sociólogo francês Roger Bastide (1898-1974), na década de 1950, Exu permanece uma “divindade caluniada”.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

A necessidade de “embranquecer” as religiões de influência africana levou à associação da imagem de Exu à figura do diabo cristão, conferindo-lhe não apenas uma aparência demoníaca, mas também atributos maléficos. O Exu dos brancos passou a simbolizar o mal, sobretudo quando esse mal estava relacionado à reprodução e à sexualidade, entendidas como fontes de pecado. Alguns estudiosos sugerem que o processo de cristianização de Oxalá, bem como de outros Orixás, foi o que relegou Exu ao domínio do inferno católico. Dessa forma, enquanto Oxalá passava a representar os atributos associados a Jesus Cristo, Exu se adequava à imagem do diabo, inserindo-se nessa dualidade bem-mal, salvação-perdição, céu-inferno tão característica da visão eurocêntrica do homem branco.

Sabe-se que ao denegrir os símbolos e crenças de um povo, substituindo-os por outros mais alinhados ao que se deseja impor, está-se eliminando qualquer possibilidade de desenvolvimento de uma identidade própria e, consequentemente, de um pensamento crítico. Exu é um exemplo emblemático dessa tentativa de dominação, pois sua imagem foi drasticamente alterada a ponto de suas características essenciais serem obscurecidas pelo manto do silêncio e da desaprovação. Por sorte, nos últimos anos — talvez como resposta ao crescente aumento da intolerância religiosa — muitos terreiros têm dado mais espaço ao Povo da Rua, reconhecendo seu valor místico não apenas no universo dos Orixás, mas também entre os humanos. Como resultado dessa abertura, Exu gradualmente deixa de ser visto como o demônio, conforme a visão maniqueísta do catolicismo acerca do bem e do mal. Essa mesma perspectiva que transfigurou Oxalá em Jesus Cristo, Iemanjá em Nossa Senhora e Ogum em São Jorge. Um pensamento que, lamentavelmente, persiste alimentando preconceitos e gerando hostilidades contra a Umbanda e o Candomblé.

Alupô, Exu! Alupô, Povo da Rua!

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