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Lição de História II

Margarete Hülsendeger

O verdadeiro poder da ciência é que nos capacita e nos dá competência, oferecendo-nos mais opções. A ciência amplia, não só o espírito inovador, criativo e lutador da humanidade, como também nossas deficiências.

Michio Kaku[1]

Em entrevista dada a revista Veja[2], em setembro de 2019, o filósofo e historiador israelense Yuval Noah Harari, afirmou que a ciência estava sob ataque. Segundo ele, os motivos são diversos, mas cita os dois mais importantes: (1º) as pessoas menosprezam as enormes conquistas que a ciência trouxe e, (2º) os líderes populistas estão em alta e eles são inimigos contumazes da ciência. Quando questionado sobre como combater o obscurantismo que parece se apoderar da sociedade contemporânea, Harari diz não existir um caminho fácil, mas acredita que uma forma de luta é sermos “incansáveis no empenho de lembrar às pessoas que as metodologias científicas são o melhor guia rumo à verdade, e devemos rejeitar com todas as nossas forças que as visões políticas e os preconceitos religiosos se sobreponham aos fatos trazidos à luz pela ciência”.

Esse posicionamento, manifestado nessa entrevista em 2019, já havia aparecido em seu livro Sapiens: uma breve história da humanidade[3], publicado em 2015. Na quarta parte, intitulada “A Revolução Científica”, o autor percorre os últimos 500 anos da história da humanidade, apontando os acontecimentos que provocaram o crescimento vertiginoso do poder humano. Como é seu costume, ele apresenta números que demonstram suas afirmativas: se em 1500 o valor total de serviços produzidos pelo homem era 250 bilhões de dólares, hoje é de 60 trilhões; se em 1500 consumia-se 13 trilhões de calorias de energia por dia, hoje consumimos 1,5 quatrilhão (p. 257)[4]. No entanto, o acontecimento que ele considera o mais notável dessa caminhada empreendida pelo homem foi o que ocorreu às “5h29min45s da manhã de 16 de julho de 1945. Naquele segundo exato, cientistas norte-americanos detonaram a primeira bomba atômica em Alamogordo, Novo México” (p. 259). Por essa razão, o autor abre essa quarta, e última, parte do livro com a foto do famoso cogumelo, resultado da explosão nuclear, acompanhada da frase dita pelo físico nuclear Robert Oppenheimer (1904-1967), retirada do Bhagavad Gita: “Agora eu me torno a Morte, a destruidora de mundos”.

Para Harari, esse é o ponto de inflexão na história da humanidade, pois a partir desse instante, o homem demonstrou a capacidade de alterar não apenas o curso da história como também de dar fim a sua existência no planeta. Para o historiador, o processo histórico que levou a bomba atômica é o resultado de uma Revolução Científica porque até por volta de 1500 os seres humanos acreditavam não ser capazes de obter novos recursos médicos, militares e econômicos. Até essa época, a ciência era apenas um método de investigação e, consequentemente, não tinha como progredir. Conforme Harari, para que isso acontecesse ela precisou associar-se a política e a economia, um trio que ao se retroalimentar, acabava se sustentando. Desse modo, sem apoio econômico e político era quase impossível a pesquisa científica e sem os novos recursos descobertos pela ciência não ter-se-ia como incrementar a produção e o desenvolvimento de cidades e nações.

Entretanto, a ciência, de acordo com Harari, diferencia-se de todas as tradições que vieram antes dela devido a três aspectos fundamentais: (1º) a disposição de admitir a ignorância; (2º) a centralidade da observação e da matemática; e (3º) a necessidade de adquirir novas capacidades, para desenvolver tecnologias inovadoras (p. 261). Assim, se as antigas tradições (islamismo, cristianismo, budismo e o confucionismo) afirmavam que tudo o que era importante saber sobre o mundo já era conhecido, pois estava escrito nos textos sagrados, a ciência parte do princípio de que “nós não sabemos”, aceitando abertamente que nenhum conceito, ideia ou teoria é sagrado ou inquestionável.

Consequentemente, na ciência não existem dogmas, mas um método comum de trabalho: coletar observações empíricas para depois reuni-las utilizando ferramentas matemáticas. A presença da matemática permitiu aos “novos magos” explicar e prever desde o porquê de uma maçã cair de uma árvore até o momento preciso da passagem de um cometa pela Terra. O grande problema é que de repente tudo parecia ser calculável e durante um tempo os cientistas tentaram reduzir a biologia, a economia e a psicologia a equações, esquecendo que “esses campos têm um nível de complexidade que torna inútil tal aspiração” (p. 266). Atualmente, essa posição extremista tem sido bastante questionada e cada vez mais se percebe que a matemática não pode resolver todos os dilemas da humanidade.

Harari também repassa a ligação estreita entre ciência e tecnologia, ou seja, entre o conhecimento puro e a aplicação prática. Segundo ele, a “conexão forjada entre ciência e tecnologia é tão forte que hoje as pessoas tendem a confundir as duas” (p. 270). O curioso é que antes de 1500 ciência e técnica eram campos completamente separados e os governantes e homens de negócios pré-modernos raramente investiam em pesquisas com o objetivo de desenvolver novas tecnologias. Foi só a partir do século XIX que ciência e técnica começaram a se aproximar e é no campo do armamento que essa associação se tornou mais estreita. Daí não deve surpreender que muitos dos avanços tecnológicos modernos tenham tido sua origem nas pesquisas com financiamento militar, o projeto da bomba atômica sendo apenas um exemplo desse tipo cooperação.

Margarete Hülsendeger é Física e Mestre em Educação em Ciências e Matemática/PUCRS. É mestra e doutoranda em Teoria Literária na PUC-RS. margacenteno@gmail.com

Durante a Revolução Científica também surge o conceito de progresso, isto é, o conhecimento de que havia muitas coisas importantes que ainda precisavam de explicação. A partir desse ponto, os textos sagrados, antes depositários de “toda” a sabedoria do universo, tornaram-se insuficientes e o homem, apesar de reconhecer sua ignorância, intuía que era possível conquistar novos “poderes”. Com essa noção de progresso científico a humanidade acreditou que poderia solucionar seus problemas mais urgentes: a pobreza, a doença, as guerras e até mesmo a morte. Toda e qualquer dificuldade seria apenas fruto da ignorância; uma ignorância que a ciência estava disposta a erradicar.

O autor não tem dúvidas que o progresso da ciência e o surgimento de novas tecnologias têm ajudado o ser humano a melhorar sua qualidade de vida: “hoje a maior parte das pessoas do mundo tem uma rede de proteção estendida abaixo delas”. Para entender esse ponto de vista, diz Harari, é preciso ter uma visão mais global, pensando em termos de macrorregiões. Se comparamos as sociedades da Idade Média com as sociedades modernas é difícil não reconhecer os avanços nas áreas da saúde e da educação: “comprimidos, injeções e operações sofisticadas nos salvam de uma enxurrada de doenças e ferimentos que um dia significaram uma inevitável sentença de morte” (p. 278). Contudo, apesar de seu otimismo, Harari reconhece que ainda há muito a ser feito, pois, milhares pessoas ainda sofrem “com uma série de degradações, humilhações e doenças associadas à pobreza” (p. 276).

Harari, no entanto, acredita em um futuro mais “luminoso” para a humanidade, um futuro no qual seja possível vencer, quem sabe, a própria morte. Não sei se o desejo do autor um dia será concretizado, mas existem muitos homens de ciência que trabalham com esse propósito, pois diante do que já foi conquistado, derrotar a morte pode não ser um objetivo tão distante como nos acostumamos a pensar. Mas, se a morte continuar sendo nosso destino final, vamos torcer para que ela chegue de forma tranquila, como uma espécie de sonho no qual não há mais espaço para o sofrimento. Em Sapiens: uma breve história da humanidade encontramos informações que nos fazem acreditar que esse sonho está quase ao alcance de nossas mãos. Leia e comprove você mesmo!

[1] KAKU, Michio. A física do futuro. Como a ciência moldará o destino humano e o nosso cotidiano. São Paulo: Rocco, 2012. 416 pg.

[2] Disponível em: https://veja.abril.com.br/brasil/entrevista-yuval-noah-harari-evitar-pior/. Acesso: 12 dez 2019.

[3] HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. Tradução Janaína Marcoantonio. 30. Ed. Porto Alegre, RS: L&PM, 2017, 459 páginas.

[4] Como o livro foi publicado em 2015 esses números, com certeza, já não são os mesmos. No entanto, como forma de ilustração eles continuam válidos.

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