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A PONTE CAIU!

… É verdade!

Ainda estamos um pouco longe das festas juninas, mas o assunto, aqui, é outro: o colapso de uma ponte em Baltimore (EUA), após a colisão de um navio.

As propostas de ligação entre as margens do Canal do Estuário vêm deste 1927, quando o Engenheiro-Arquiteto Eneas Marini propôs um túnel ligando o Centro de Santos à Bocaina, atual parte de Guarujá.

O também Engenheiro-Arquiteto Francisco Prestes Maia publicou, em 1948, o Plano Regional de Santos, que propunha três ligações, todas mediante pontes, uma delas mais ou menos no mesmo local onde está previsto o túnel subaquático que ligará Santos a Guarujá. Era uma ponte móvel.

Considerando a evolução das embarcações e os mais de cinco mil acessos anuais ao Porto de Santos, todas elas provavelmente já teriam sido demolidas há algum tempo!

Antes de fazer uma analogia entre o caso dos EUA e as propostas mais recentes de pontes sobre o Canal do Estuário, creio ser interessante mencionar a Hidrovia Tietê-Paraná.

O Rio Tietê já é navegado por silvícolas desde antes das “Entradas” e “Bandeiras” dos colonizadores portugueses e bandeirantes; mas a Hidrovia Tietê-Paraná é mais recente.

É importante esclarecer que a diferença entre uma via navegável e uma hidrovia é que a segunda é caracterizada por intervenções que podem incluir obras de retificação de cursos, dragagens de manutenção e aprofundamento, barragens e eclusas, além de sinalização e fiscalização, entre outras exigências.

Os comboios de barcaças – que podem ser bastante longos dependendo das características geométricas da hidrovia -, para navegarem com segurança precisam de espaço que permita sua manobrabilidade.  Nesse sentido, o ideal é que toda a via navegável com potencial para se tornar uma hidrovia seja considerada no projeto de qualquer tipo de transposição entre suas margens, sejam pontes, dutos ou túneis.

Para tanto, o projeto estrutural dessas obras, no caso de pontes, deve prever vãos entre pilares e gabaritos aéreos adequados ao trem-tipo (configuração geométrica) dos comboios hidroviários. Em resumo, a distância entre sua meso e infraestrutura (pilares e fundações), bem com o gabarito aéreo da superestrutura (tabuleiro ou afim) devem ser cuidadosamente definidos. Isso é complicado, pois quanto maior a altura do empurrador do comboio, mais alta deve ser a ponte. Com isso, mais espaço será ocupado pelas alças de acesso à ponte, na parte terrestre, e mais cara será a obra.

No caso da Hidrovia Tietê-Paraná, a expansão de demanda por esse tipo de transporte, de melhor eficiência energética, exigiu intervenções em pontes que haviam sido projetadas anteriormente. Algumas pontes precisaram ser alteadas e ter pilares intermediários removidos, o que exigiu bastante criatividade e arrojo por parte dos projetistas estruturais.

Mesmo assim, há um histórico de colisões de comboios com bases de pilares, por motivos nem sempre eletromecânicos ou associados a intempéries.

Para minimizar o risco de colapso estrutural no caso de colisões, a solução é implantar as chamadas “estruturas de sacrifício”, elementos físicos independentes que protegem a estrutura principal. Isso funciona para salvaguardar a integridade estrutural da ponte, mas não impede que a embarcação naufrague, em razão de danos ao casco decorrentes da colisão. Nesse caso, o resultado pode ser a interrupção do fluxo na hidrovia, com consequências econômicas que podem ser gravíssimas.

Voltemos ao caso da ponte de Baltimore:

Ao que consta, o navio teve pane de motor, perdendo sua manobrabilidade. Se havia estrutura de sacrifício, ela não funcionou a contento, e o colapso da ponte prejudicou a mobilidade seca entre as margens, a própria circulação de embarcações, sem falar no mais dramático: a ocorrência de vítimas.

Um navio tem porte bem maior do que um comboio hidroviário. Sua manobrabilidade também é mais complexa, com reações tão mais lentas quanto maiores as suas dimensões. Assim, um evento desse tipo, ainda mais em decorrência de pane de motor com ou sem associação a ventos intensos, é o cenário ideal para uma tragédia.

Não à toa, a opção por túneis subaquáticos tem sido adotada mundo afora, sobretudo em acessos a instalações portuárias de grande porte e relevância econômica. Afinal, cerca de 90% da corrente comercial mundial circula pelos portos.

No caso dos Canais do Estuário e de Piaçaguera, que dão acesso a terminais portuários em Santos, Guarujá e Cubatão, as propostas de ligação entre margens por túnel ou ponte tem se alternado desde 1927.

Nesse meio tempo, a única que saiu do papel foi uma maquete do que seria uma ponte estaiada na região da Ponta da Praia, que ligaria a Av. Mário Covas, em Santos, à Av. Adhemar de Barros, em Guarujá, uma das locações sugeridas por Prestes Maia.

Ela foi mais elogiada como “cartão postal” do que por resolver a questão da mobilidade interurbana ou por não prejudicar a expansão das atividades portuárias, fundamentais para a economia regional e do país. Afinal, aproximadamente 30% da corrente comercial brasileira passa pelo Porto de Santos.

Para se ter uma ideia do impacto urbano dessa proposta, o gabarito aéreo dessa ponte implicaria em alça de acesso a partir quase que do Canal 4, e ao longo da Avenida Mário Covas!

Localizada antes do complexo portuário, um colapso dessa ponte ou o naufrágio de um navio após colisão com suas estruturas de sacrifício, teria consequências similares às da ruína do Colosso de Rodes, uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo: poderia impedir o acesso ao Porto de Santos sabe-se lá por quanto tempo, com prejuízos incalculáveis.

No final da década de 2000, a ECOVIAS propôs uma ponte interligando a Via Anchieta à Rodovia Domenico Rangoni, em local próximo ao de uma das propostas de Prestes Maia. Inicialmente, a solução estrutural era de uma ponte em arcos, seguida de outras, aumentando o gabarito aéreo. Mas um problema permanecia: as fundações ficariam dentro do canal.

Em 2011, a extinta DERSA iniciou um estudo, não à toa denominado Projeto Prestes Maia, que avaliou várias opções de localização de ligações secas entre as margens do Canal do Estuário. Chegou basicamente às mesmas conclusões daquele Engenheiro-Arquiteto.

Como, em tese, só haveria recursos para executar uma delas – e mesmo assim com a necessidade de aporte de recursos pelo Governo Federal -, foi priorizada a ligação intermediária, via túnel subaquático, em localização similar à ponte móvel de Prestes Maia, que também era a de túnel subaquático estudado pelo Escritório Figueiredo Ferraz, em 1999, por demanda da então CODESP.

Apesar de dispor de licenciamento ambiental e projeto-executivo pronto para licitação, a indisponibilidade de verba por parte do Governo Federal, inviabilizou a execução da obra, que teve sua licitação cancelada em 2014.

É importante salientar que esse projeto ainda não estava perfeitamente equalizado na parte terrestre, o que gerou manifestações contrárias ao traçado previsto, por conta da necessidade de desapropriações de imóveis particulares, por exemplo.

Em 2013, a empresa CONTERN apresentou um estudo que propunha uma nova ligação Planalto-Baixada, a partir do Rodoanel, na região de Suzano. Esse estudo previa um túnel subaquático escavado por uma tuneladora semelhante à utilizada para obras de metrô, porém com um diâmetro não disponível no Brasil. Seu traçado seria similar ao da ECOVIAS, porém com impacto terrestre bem menos importante, pois a profundidade seria aproximadamente três vezes menos do que o gabarito aéreo da ponte. Também não prosperou.

A proposta da ponte em arcos da ECOVIAS já havia sido apresentada no Conselho de Autoridade Portuária (CAP) de Santos, em 2009, sem maiores desdobramentos. Com outra solução estrutural, aumentando seu gabarito aéreo e distância entre pilares, ela foi reapresentada ao CAP, em 2019.

Participei dessa reunião e assisti, preocupado, a simulação de uma manobra de navio de grande porte à jusante da ponte. Essa preocupação parece não ter sido só minha.

Perguntei se o projeto previa estruturas de sacrifício. A resposta foi afirmativa, mas isso resolveria apenas a questão da proteção da meso e infraestrutura da ponte, que permaneciam dentro do canal. Caso ocorresse um naufrágio de embarcação após colisão com as estruturas de sacrifício, o acesso aos terminais após a ponte, bem como todos os terminais portuários do Canal de Piaçaguera ficaria seriamente prejudicado. Não à toa, a reação de seus representantes não foi nada favorável.

Nesse mesmo ano, a então CODESP retomou a proposta de túnel subaquático, tendo o túnel da DERSA como referência.

A partir daí passou a ser travada uma disputa entre o Governo do Estado, partidário da ponte, e o Governo Federal, defensor do túnel, com os argumentos de que já era conhecida a máxima profundidade economicamente viável do canal de navegação (-17 m), e de que essa obra, além de não criar uma nova barreira aérea – o que uma ponte poderia representar, dependendo da tipologia das embarcações que poderiam frequentar o Porto de Santos -, também permitiria eliminar a única existente, o “Linhão de Itatinga”, cujo cabeamento seria embutido no túnel.

Vários setores da sociedade, sobretudo os ligados a atividades portuárias e logísticas, passaram a defender a solução túnel, porém, nenhuma alternativa de financiamento foi viabilizada.

A ponte da ECOVIAS tinha a seu favor o domínio desse tido de obra por membros do grupo empresarial e a possibilidade contratual de extensão de prazo, em troca de investimentos em obras.

Com a decisão do então Governo Federal de desestatizar a Autoridade Portuária de Santos, a construção do túnel foi incluída como compromisso de investimento, assim como a dragagem de aprofundamento do canal até -17 m, entre outros.

O atual Governo Federal resolveu retirar o Porto de Santos do programa de desestatização, mas manteve a intenção de construir o túnel, em princípio com recursos próprios.

O atual Governo Estadual, detentor do projeto da DERSA, também se propôs a executar a obra, gerando um impasse, felizmente resolvido em 2024, com a celebração de um acordo entre as partes, repartindo os investimentos necessários.

A Consulta Pública já foi aberta e há três Audiências Públicas agendadas para os dias 17, 18 e 19/04/2024, em Santos e Guarujá.

Ainda há importantes aspectos a serem considerados no projeto, sobretudo no que se refere aos acessos terrestres ao túnel. São necessários estudos relativos a impactos no trânsito, sobre como será considerado o VLT nesse projeto, sobre como será afetado o ambiente urbano, em geral. Mas a solução túnel parece ter sido pacificada, nesse caso.

Também há um aspecto pouco salientado nas discussões sobre o tema:

É fato que o Brasil domina a tecnologia de construção de pontes em seus vários modelos estruturais. O mesmo vale para a construção de túneis terrestres. A construção de um túnel subaquático – inédita no Brasil, mas comum em países desenvolvidos – permitirá transferência de tecnologia, dotando a Engenharia nacional de uma expertise que poderá ser replicada interna e externamente.

Alguém poderá afirmar que o risco de um túnel subaquático é tão significativo quanto o de uma ponte.

E se uma embarcação colidir com a superfície do túnel? E se houver um vazamento ou ruptura da estrutura? E se houver um incêndio em seu interior?

Bem, ao que consta, a geratriz superior do túnel ficaria na cota -21 m, ou seja, quatro metros abaixo da cota -17 m. Uma embarcação, salvo situações extremamente raras, sempre navegará no máximo no limite do calado operacional estabelecido para o canal.

Quanto às possibilidades de sinistro questionadas, “Lei de Murphy” à parte, elas só têm ocorrido em filmes catástrofe, graças a Deus, mas ficam no imaginário popular, criando temores psicológicos, sobretudos nos que sofrem de claustrofobia.

Já no caso de pontes em rotas de navegação, tivemos o acidente de Baltimore como mais um “case” a ser avaliado.

Quanto aos recursos que poderiam ter financiado a ponte, quem sabe eles não possam ser direcionados para a construção de uma nova ligação planalto-Baixada Santista, preferencialmente que não crie novos gargalos por aqui.

A ligação Suzano-Santos é uma possibilidade a ser considerada.

Adilson Luiz Gonçalves

Escritor, Engenheiro, Pesquisador Universitário e membro da Academia Santista de Letras

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